Mil-em-Rama

Coluna de Maristela Barenco

3 MIN DE LEITURA | Revista 47

Todas as Vidas importam!

 

O outro é você mesmo
vivendo em um mundo paralelo
Lama Padma Santem

 

Em tempos de barbárie, o silêncio se faz necessário. As palavras que possuem lastro ficam grávidas de indignação. E rareiam. Como disse Etty Hillesum, a moça judia que escreveu diários e morreu com 29 anos em Auschwitz, “Vou ter que achar uma língua nova”. Escrevemos para encontrar uma língua nova.
O escritor italiano, Primo Levi, escreveu um diálogo que teve, ao sair de Auschwitz ao lado de um grego. O grego tinha sapatos. Primo Levi tinha fiapos de vida. E perguntou: em uma guerra, o que vale mais: comida ou sapatos? O grego respondeu que os sapatos são condições para se chegar à comida. Mas Primo Levi retruca, dizendo que a guerra já acabou. O grego então responde: “guerra é sempre”.
Em 2015, o Papa Francisco presenteou o mundo com a encíclica Laudato Si, inspirada nas palavras de São Francisco de Assis, sobre o cuidado com a casa comum. Nela, se repete uma frase, já pronunciada em 2001, por João Paulo II, que nunca fez tanto sentido: “Se o olhar percorre as regiões do nosso planeta, apercebemo-nos depressa de que a humanidade frustrou a expectativa divina” (Laudato Si’, capítulo 1, 61).
Sim, Auschwitz e todas as guerras não foram suficientes para ensinar. Pensávamos que havia sido. Mas não foram. Nem mesmo aos muitos que perderam toda a sua ancestralidade ali. A humanidade – essa que Ailton Krenak, em seu clássico “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” nomeia de humanidade zumbi, uma “abstração civilizatória descolada do organismo Terra” -, introjetou de tal forma a dicotomia herdada das narrativas do ocidente, que passamos a aceitar a guerra como premissa civilizatória, toda vez que nos concentramos apenas em saber de que lado estaremos em uma guerra. Incompetência alteritária estrutural e sistêmica é o nome dessa condição.

Estar a favor de Israel ou dos Palestinos não pode ser a questão. Negar qualquer guerra como premissa civilizatória é imperativo ético-estético. Não há, nunca houve e nunca haverá uma justificativa para a Guerra.

Se a vida é sagrada, não pode haver guerras santas. Todas as vidas importam. Se não cremos nisso, visceralmente, deveríamos fechar todos os templos, de todas as designações possíveis, porque passar por cima dessa premissa é fechar as portas de qualquer conexão com o Sagrado. Se não cremos nisso, deveríamos fechar todas as escolas e universidades, pois não há nada que se possa ensinar sobre os escombros de uma guerra.

Não é o terrorismo que causa as guerras. As guerras produzem o terrorismo. O terrorismo nasce do ódio disseminado pelas guerras, pelas mortes de nossos amores, pela orfandade planetária. O terrorismo é uma semente que só desponta em solo de injustiças e, em especial, em campos de refugiados no mundo inteiro.

Onde há refugiados – e não podemos esquecer que 80% são sempre mulheres e crianças -, há crianças sendo recrutadas, porque, apesar de nada entenderem, crescem sabendo que precisam lutar contra algo e alguém. Uma guerra deixa um lastro de ódio e vingança em gerações que hão de vir daquelas que ainda nem nasceram.
Se as guerras são projetos dos machos adoecidos, nós, mulheres, precisamos criar uma cultura da paz. Disseminar sementes lógicas de outro mundo, dentro desse. É urgente que nos irmanemos por todas as mães e por todos os filhos. Cada criança que tomba em nome de uma guerra abre uma ferida e um luto incurável no ventre de todas as mulheres e mães. Não é possível mais que a inteligência mundial trabalhe para projetos militares.

Precisamos de uma inteligência sensível que trabalhe para a regeneração, das pessoas e do planeta, que também agoniza em uma crise climática sem precedentes.

Que nesse tempo de tanta desolação, possamos aprender com os povos originários, cujo fim do mundo foi no século XVI, as estratégias de resistência. Segundo Krenak, esses povos sobreviventes cantavam, dançavam e viviam a experiência mágica de suspender o céu e respirar. Suspender o céu, segundo ele, é ampliar o horizonte existencial, é cuidar das poéticas da existência. Diria eu, suspender o céu é sustentar ideários outros e mais: é buscar recriar aldeamentos comprometidos com a Vida.

Para citar este artigo:

BARENCO, Maristela. Todas as Vidas importam! Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-47/todas-as-vidas-importam/, número 47, 2023

Uma guerra deixa um lastro de ódio e vingança em gerações que hão de vir daquelas que ainda nem nasceram.
Se as guerras são projetos dos machos adoecidos, nós, mulheres, precisamos criar uma cultura da paz. Disseminar sementes lógicas de outro mundo, dentro desse. É urgente que nos irmanemos por todas as mães e por todos os filhos. Cada criança que tomba em nome de uma guerra abre uma ferida e um luto incurável no ventre de todas as mulheres e mães.

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais

Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.

Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF

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