Entrelaçamentos Inegáveis

Coluna de Telma G. Laurentino

3 MIN DE LEITURA | Revista 47

Hidrocosmos, correntes abissais e lágrimas

A carência de estabelecer relações de respeito e reciprocidade com os corpos de água (o nosso e os outros), em três actos: dança, choro, mergulho.

 

Acto II

Libertam-se as águas das lágrimas engarrafadas

A Água cobre ˜74% da superfície terrestre e compõe cerca de 60% do corpo humano (˜75% quando nascemos, 46% quando envelhecemos). O corpo de água humano não está nunca separado dos outros corpos de água terrestres. Antes de ser chá, legume, lágrima, urina… a água que em nós entra e de nós derrama foi já onda, rio, transpiração botânica, nuvem… flui através de corpos humanos, simbiontes e tecnologias que a poluem e filtram, num ciclo geofísico, biológico e tecnológico de eterna encarnação e metamorfose.
E neste remoinho de transformações: somos parte de um imenso hidrocosmos. Somos água tecnocapitalista, poluída e também água ritualística, pura. A nossa subjectividade isolada é uma falácia antropocêntrica e violenta que já vai hora de compostar!
Mas compostar ideias herdadas e prescritas é trabalho árduo e doloroso. Inclui a destruição de pedestais que nos mantém em posições de controlo, inclui transformar todas as relações que não se enraizam em confiança e consentimento, inclui admitir responsabilidades e praticar reciprocidades: com os outros humanos, com os outros organismos, com as terras, com as águas…

E são tantas e tão complexas as violências que cometemos contra os corpos de água: o engarrafamento, o desperdício, o envenenamento – por esgotos, mercúrio, fertilizantes, pesticidas, hormonas, cólera, plásticos, químicos da indústria da moda… a lista é brutalmente longa. A dor, indignação, e culpa tornam-se excruciantes…

A água em nós não é apenas fisiológica mas torna-se cultura e sensibilidade, e quando se confronta com as extensões da profanação, urge derramar-se. O choro é a primeira forma humana de expressão quando deixamos as águas amnióticas maternas. É a nossa reacção primordial à separação do corpo de água em que nos desenvolvemos, e durante os primeiros anos de vida são as lágrimas que comunicam as dores.
As lágrimas adultas entrelaçam fisiologia, sensação, psicologia e contexto socio-cultural. Nós, que crescemos no contexto patriarcal que trabalha laboriosamente na lista de violências contra todos os corpos de água, somos incentivados a retirar as lágrimas do nosso vocabulário multissensorial.
“Que vergonha! Um homem não chora”, e “as meninas grandes ficam feias a chorar“ (e quem não se sente binário não existe sequer na narrativa patriarcal). Cria-se então uma distorção interna generalizada, engarrafam-se as lágrimas não vá ser “infantilização”, “perda de controlo” e “vitimização” e “a vulnerabilidade também nunca fez bem a ninguém”. Então, a infantilização e vitimização que queríamos evitar exacerbam-se: de emoções escondidas e lágrimas oprimidas criam-se grupos violentos. De emoções não maturadas e destraduzidas, líderes políticos fecham-se em salas para discutir incalculáveis perdas de vida, sem nunca dar corpo ao sofrimento. E quem chora por suas terras e por seus povos, pelo outro e pela Terra, é mantido fora das salas. A revolução necessária é então discutida pelos líderes “não emocionais” e “muito objectivos”, segundo os quais a mudança se quer não radical, monetizada e bem lucrativa (para pouco, a custo de todos).
A este ritmo tradicional e indigno de confiança crescem as iniquidades. Enquanto que 20% da população mundial continua sem acesso a água potável, os que têm, consomem cada vez mais (1).
Em Portugal, cada habitante gasta em média 190 litros de água diariamente (2). No entanto, apesar dos valores de excelência da nossa água potável (2), consumiram-se mais de 50 litros de água engarrafada por pessoa em 2021 (3). Podem ser utilizados 5.3 litros de água apenas na produção da garrafa e custam outros 2.02 litros para engarrafar 1 litro correctamente (4,5): adicionam-se 366 litros de “água invisível” à água engarrafada consumida por pessoa.

E estes números “simples” zombam da complexidade das razões do consumo e da extensão dos problemas socio-ecológicos que enfrentamos, ignoram: o petróleo queimado, os microplásticos criados, o facto de, em países como os Estados Unidos, a água engarrafada ser roubada a ecossistemas e populações humanas locais (6), e mais, e mais, e mais… A complexidade cumulativa chama as lágrimas: tradutoras da frustração que aperta o coração e ameaça a esperança. Essas lágrimas enlutadas já foram muitos outros corpos de água, e caem agora como hidrocosmos de milhares de bactérias, vírus e fungos que vivem nos nossos olhos. Tornam-se ecossistema da resistência ao cinismo e apatia. São empatia em maturação. São cansaço que flui e se desaloja, para que possamos continuar a mover-nos com todos os corpos de água que nos sustêm.

Choremos então, sem desviar o olhar, para não replicar nos nossos corpos humanos as violências opressivas infligidas aos outros corpos de água. As lágrimas que levem as barragens que nos mantêm presos em ilusões de conforto. Choremos não em auto-infantilização, mas enquanto processo de busca e demanda por integridade e mudança. Choremos.

Que lágrimas oprimidas nos mantêm separados das responsabilidades para com a Terra e também das suas dádivas mais generosas?

Que violências se disfarçam de conveniência?

Que mudanças convidam os corpos de água?

Referências

Sugestão para conversa musical com as lágrimas

Teardrop – Massive Attack
https://www.youtube.com/watch?v=Tb0MC0jFv6M

 

Para citar este artigo:

G. LAURENTINO, Telma. Hidrocosmos, correntes abissais e lágrimas, acto II. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-47/hidrocosmos-correntes-abissais-e-lagrimas-acto-ii/, número 47, 2023

Choremos então, sem desviar o olhar, para não replicar nos nossos corpos humanos as violências opressivas infligidas aos outros corpos de água. As lágrimas que levem as barragens que nos mantêm presos em ilusões de conforto. Choremos não em auto-infantilização, mas enquanto processo de busca e demanda por integridade e mudança. Choremos.

Telma G. Laurentino

Telma G. Laurentino

Bióloga

Educadora
Escritora
Artesã intuitiva
Biodiversidade – Evolução & Genética – SocioEcologia – Educação inclusiva –
Pertença
TelmaGL.com
Telma.laurentino@gmail.com