O Canto do Verbo

Coluna de Ana Alpande

4 MIN DE LEITURA | Revista 47

Deixa Que O Doce Animal Seja Aquilo Que Seja

Um pequeno ensaio sobre a poética da compaixão à luz do poema Wild Geese de Mary Oliver.

“Não precisas ser bom.
Não precisas andar de joelhos, arrependido,
milhares de milhas pelo deserto.
Apenas precisas permitir que o suave animal do teu corpo
ame aquilo que ama.”

Wild Geese, Mary Oliver

Costumo brincar, falando muito a sério, que a poesia é o meu ansiolítico natural, embora seja muito mais que isso. Desde os 7 anos de idade que vou tatuado poemas na Alma, decorado versos e recitando-os para mim mesma, contanto repetições nas pontas dos dedos, tal como a minha avó afagava as aflições do peito nas contas do rosário, entre um Pai-Nosso e duas Avé-Marias.

Confesso que o Pai Nosso é a minha oração predilecta para as horas do desespero: perante o perigo iminente ou a voz da morte, não porque o determinei, antes porque assim o herdei das mulheres que me deram o sangue, e o sangue é sempre mais forte. Fora essas situações extremas, rezo recitando poetas, ofereço versos ao espaço vazio, clamando estrofes em voz alta, como se a minha voz fosse uma chama suave que convida o fogo aos lugares onde o espírito se sentiu excluído.

O excerto acima da Mary Oliver é talvez a conta mais preciosa do meu rosário.

Cresci como tantas outras crianças numa cultura onde os adultos, cedo deixaram subentendido, que para ser amada e validada tinha que ser boa menina e cumprir uma longa lista de requisitos, tão longa que era impossível de decorar. A punição implícita era a de não ser digna de aceitação, logo correr o risco de ser castigada com a exclusão, exilada da tribo nas ameias do meu quarto ou num qualquer canto sossegado da casa.

Os meus pais não o faziam por mal, repetiam, sem se aperceberem, as mesmas frases que ouviram de família, vizinhos, professores e cultura. Eles queriam uma menina boa, porque não queriam que eu vivesse o terrível fado de ser rejeitada pela comunidade, afinal a minha rejeição implicaria a vergonha, de eles próprios falharem, enquanto pais e colocaria em risco o meu desenvolvimento.

O medo da exclusão está imbuído no sistema nervoso de um mamífero, se somos excluídos do bando, as nossas hipóteses de sobrevivência são reduzidas drasticamente. Daí sermos capazes tantas vezes de aguentar relações profundamente dolorosas e às vezes até mesmo abusivas, porque algo em nós é relembrado pelo sistema límbico que é mais perigoso ir, do que ficar em relações ou situações onde não nos sentimos vivos.

Vejo influencers, com especialidades profissionais na área do apoio ao outro ou na saúde mental, defenderem frases feitas como: “está comprovado que pessoas com bons pensamentos são boas pessoas e pessoas com maus pensamentos acabam más pessoas” ou “se queres ter sucesso na vida é importante largares as pessoas tóxicas e procurares pessoas que com o sucesso que desejas”, estes entre tantos outros exemplos, onde prevalece uma narrativa autocentrada, que permeia a exclusão do que não se encaixa nas imagens idealizadas, em prol do bem estar e desenvolvimento pessoal. Reflito muitas vezes no eco que estas frases fazem na cultura e no que é que perpetuam, seja do lado de que quer se “desenvolver” e tem o obstáculo do “amigo tóxico” ou do “mau pensamento”, seja do lado do amigo que se sente tóxico, ou do pensamento que sabe que é mau, mas não consegue ser outra coisa para além daquilo que é.

O exemplo da minha infância e este que acabo de dar possuem várias parecenças, embora em diferentes contextos, é quase impossível não pensar nos ideais de pureza e redenção que contornam e delimitam tanto do pensamento ocidental, com o seu deus único e seus mandamentos bem claros em relação a quem merece ou não pertencer ao “reino dos céus”.

Mary Oliver diz: “não precisas ser bom, nem andar de joelhos pelo deserto arrependido, apenas precisas permitir que o doce animal do teu corpo, ame aquilo que ama.”

Imagina só os teus pais, professores, cuidadores, vizinhos e amigos terem-te cantado esta canção de amor a cada aniversário, cada vitória e erro colossal, cada queda, derrota, luto ou desamor. Imagina gurus do autodesenvolvimento promoverem a mensagem de que a única coisa a fazer é permitir que o “o doce animal do teu corpo, ame aquilo que ama.”
Então deixariamos de seguir gurus e passaríamos mais tempo com os animais. Teríamos que reaprender esta coisa de ser animal primeiro e só depois saber o que amar e como amá-lo.
A hierarquia do merecimento seria uma besta completamente diferente!

Infelizmente a maioria de nós morre de medo do nosso doce animal, ou de qualquer animal na verdade, que não seja domesticado, polido e muito bem comportado.

O medo de não ser aceite ou de não pertencer não é o mau da fita, é apenas a premissa que recorda a cada passo que somos seres relacionais, nada se desenvolve dentro que não resulte da relação com o que está fora.

Os estudos sobre compaixão do Christopher Germer e da Kristin Neff apontam para o curioso facto que pessoas com maior grau de autocompaixão aparentam ser menos auto centradas.
A minha experiência pessoal e profissional confirma que há medida que vai havendo mais integração de uma pessoa na paisagem diversa e complexa que a compõe e habita, aumenta não só a autocompaixão mas também o espaço para compreender, apoiar e verdadeiramente validar todas as relações íntimas, mesmo aquelas que no início do percurso terapêutico eram causa de grande sofrimento e disrupção.

Quando é o doce animal a escolher o que ama, tendemos a encontrar mais condições de oferecer presença aos que sofrem, sem querer salvá-los da condição onde se encontram e sem julgar se a mesma é boa ou má. Tendemos ainda a resgatar o nosso instinto protector, recuperando a experiência de território e limites, possibilitando escolhas adequadas ao contexto e não a dogmas. Passa a ser o doce animal do corpo a escolher em função daquilo que ama num determinado momento.

A vergonha quando vira um complexo social e familiar, sente-se como uma condição autoimune, assim que se activa, vira-se contra nós, virando-nos contra qualquer coisa. No entanto, sem vergonha, dificilmente conseguimos perceber quais os limites e contornos que nos permeiam. O grande paradoxo é o de que os animais que nos habitam, cheios de garras e dentes, são ao mesmo tempo a doçura daquilo que nos ama.

Enquanto a exclusão e dominação forem a estratégia principal, da nossa cultura para lidar com o desconforto que abala o status quo, dificilmente iremos perceber quem é esse animal de que a Mary fala, e dificilmente teremos o deleite de nos banhar no seu amor.

Este não é um problema meu ou teu, é nosso e todos podemos ser agentes disruptores de mecanismos de domesticação sistémica e exclusão psicossocial.

Mas comecemos pelo início, passar mais tempo com os animais.

Para citar este artigo:

ALPANDE, Ana. Deixa Que O Doce Animal Seja Aquilo Que Seja. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-47/deixa-que-o-doce-animal-seja-aquilo-que-seja/, número 47, 2023

O medo da exclusão está imbuído no sistema nervoso de um mamífero, se somos excluídos do bando, as nossas hipóteses de sobrevivência são reduzidas drasticamente. Daí sermos capazes tantas vezes de aguentar relações profundamente dolorosas e às vezes até mesmo abusivas, porque algo em nós é relembrado pelo sistema límbico que é mais perigoso ir, do que ficar em relações ou situações onde não nos sentimos vivos.

Ana Alpande

Ana Alpande

Colunista e Autora regular da Revista

Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias

A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.

Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.

O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.

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