artigo de Susana Cravo

Culturas Regenerativas

Do Saber-se Parte para o Sentir-se Parte

5 MIN DE LEITURA | Revista 44

No rescaldo do Dia da Terra, que coincidiu com uma exposição em Lisboa sobre as Mulheres de Mahungo, escrevo hoje sobre uma inquietação antiga e reavivada pela brilhante apresentação da Professora Maristela Barenco C. de Mello, a que tive o privilégio de assistir há poucas semanas, no âmbito do 1º Encontro de Eco-Mitologia em Português:

Como se passa da condição de saber-se parte da natureza, para a condição de sentir-se parte da natureza?

E se sentimos, porque preferimos perpetuar estilos de vida destrutivos, para satisfazer desejos que passaram a ser necessidades compulsivas?

A busca do saber, desligou-nos do sentir. A hiper-racionalização e adição por teorias, factos, quantificação e controle, e a habitual repulsa e medo do desconhecido, imprevisível e complexo, desconectou-nos de sabedoria crucial: a do sentir, a visceral, a instintiva, a intuitiva, a voz interna que sabe, o corpo que sente. Que aliás, à luz da modernidade, são vistos como primitivos (no sentido verdadeiramente pejorativo), como nos relembram vários autores, entre os quais Sofia batalha – a organizadora deste evento, que incentiva no seu trabalho e na recente obra “O Pequeno livro da Imanência” um convite que considero urgente: o de inscender.

Numa sociedade viciada em saber, ascender, progredir e conquistar, é urgente, desacelerar, descer à terra, ao corpo, sentir as coisas como são: as agradáveis e belas, e as estranhas e insuportáveis.

Assim como é importante continuar a questionar a hegemonia, a descolonizar a consciência e o imaginário.

A Professora Maristela Mello começou por nos presentear com uma citação que para mim, que viajo entre os mundos, me diz muito:

“Para dar início à viagem não basta sair do continente. É preciso perdê-lo como referência (…) O olhar universal do navegador recria alhures a casa que deixou (…) fazendo da terra que se parte a mesma que se chega (…)” Ana Godoy, A Menor das Ecologias.

Vejo recriadas terras, modelos de pensamento, programas e políticas, formas de viver e trabalhar, tantas vezes incongruentes com a essência dos Lugares, e reconheço que é preciso muita coragem e muita humildade, para regularmente nos darmos conta – e assumirmos – (d)os papéis de colonizador e de colonizado que Tod@s ocupamos e voltar ao Lugar de Co-Participante e de Aprendiz-Praticante.

É difícil desaprender, por vezes é assustador enfrentar o desconhecido e é muito mais cómodo fazer “como sabemos”, “como estamos habituados” e à luz das nossas referências.

Como Professora Universitária, Maristela Mello partilhou que o seu trabalho na Academia é trazer perguntas aos alunos para os quais não temos resposta. “É o de mostrar o quanto a ciência tem subalternizado a vida. E o de mostrar à vida, o quanto nós nos temos subalternizado diante da ciência.”.

Frequentemente sentimo-nos na obrigação de justificar quais os estudos que estão a ser feitos sobre o que dizemos, mas pouco nos importamos com o saber ancestral que perdemos, e de que às vezes até temos vergonha.

Para esta Professora é preciso trazer para dentro da ciência e da academia uma visão e comunicação da vida que possa de novo reintegrar o planeta.

“A ciência é a instituição que é um aparato do sistema colonial. Não adianta falar em descolonização se não fazemos a crítica epistemológica sobre as formas de conhecimento que produzimos. Não dá para pensar as coisas sem pensar na instância que pensa as coisas.”

Lembra-nos da ambivalência do Ser Humano – que por um lado é arrogante por ser o último a chegar mas querer mandar e controlar e que por outro lado, somos todos atravessados pelo trauma, de inúmeros processos de colonização e de fragmentação, que nos trazem duas grandes consequências:

– Operamos com concepções que assentam sobre premissas – filosóficas, paradigmáticas, epistemológicas, que são incompatíveis com os modelos que queremos propôr – a maneira como educamos por exemplo, está longe de nos ajudar a “Sentirmo-nos parte”;

– Continuamos a perpetuar a colonização dos modos de viver. Somos consumidores terminais de formas de pensar, geradas/perpetuadas por sistemas mediáticos, tecnológicos, económicos, educacionais. (Maristella Mello)

Sublinho que a Academia foi dos sistemas mais coloniais em que participei, quer como aluna, quer como trabalhadora. Hoje muitas destas Instituições revestem-se de uma “modernização”, e não obstante a evolução que felizmente tem havido, o conservadorismo, e a falta de cooperação prática e efectiva com outros actores do ecossistema social, ecológico, económico, cultural, dificulta que a Educação faça o seu principal trabalho: Apoiar os alunos no seu percurso de Aprendiz-Peregrino-Praticante, que será um trabalho para toda a vida.

E como nos diz a Professora Helena Marújo – Titular da cátedra UNESCO em Educação para a Paz Global Sustentável , “é preciso renovar uma dimensão de cidadania para a contribuição de bem comum (…) para um olhar que não seja o da competitividade ou bem estar pessoal, (…) de inspirar e tocar, não apenas do ponto de vista do conhecimento científico, que obviamente é fundamental no processo educativo, mas no que diz respeito à construção do Ser Humano – que pessoas precisamos de ter na vida, para cada contexto, cultura, momento histórico.”

A propria Comissão Internacional sobre os Futuros da Educação (UNESCO 2022) diz “A biosfera é um importante espaço de aprendizagem (…) o conhecimento e os ensinamentos indígenas fundamentados na terra e na água, bem como muitas cosmologias africanas e asiáticas, postulam relações nas quais os não humanos são entendidos, não apenas como seres com os seus próprios direitos, mas como educadores e professores com os quais os humanos podem aprender em relação.”

Já para Achille Mbembe, “o fundamental é recuperar o sentido da nossa humanidade original: a capacidade de preservar o que nos é comum, de restituir e reparar, uma e outra vez, as relações entre nós e entre nós e os outros seres vivos.”.

Voltando à Professora Maristela Mello, para ela e o seu grupo de estudo, a aposta é “num trabalho micro-político quotidiano, de tentar compreender as formas inconscientes e as formas de desejo que imperam sobre os nossos discursos politizados e incoerentes.”.

Precisamos de deixar, entre outras coisas, o olhar do navegador, os continentes de referências, as monoculturas de pensamento, a alienação geopolítica de querer “ser Europeu/Ocidental”, de objectificar tudo o que é vivo, de dar primazia à ciência em vez da vida! É preciso ter a coragem de deixar a “verdade” que trazemos na mochila e a “terra mestra” (arrogante e imperial) que porta a verdade do mundo. (Maristela Mello)

O projecto ocidental é sim colonial. Mas deixemo-nos de romantismos, passamos todos pelos papéis de colonizador e colonizado, de carrascos e de vítimas. E de salvadores também. Aliás, a própria cooperação, desenvolvimento e a filantropia – que andam muitas vezes de mãos dadas com outros papéis, nada ingénuos, enfrentam a crise inevitável de não saber muito bem, como sair do paradigma de Fazer o Bem (Herói/Salvador) e vir para o paradigma do Desenvolvimento Regenerativo (Interdependente, biointeligente, auto-expressivo e em permanente evolução).

E então como é que voltamos a sentirmo-nos parte? Em vez de apenas saber?

O dia 22 de Abril para mim, amanheceu com esta frase:

“O que nós mais precisamos fazer é ouvir dentro de nós a terra chorando” (Thich Nhat Hanh).

Mas entardeceu com a frase de uma Mulher de Mahungo, em resposta à pergunta que lhe fizeram sobre o que as pessoas aprendem quando passam uma experiência em Mahungo:

“Acima de tudo eu acho que as pessoas se sentem muito amadas” (Carolina Cossa).

As duas frases são sábias.

É preciso ouvir o choro da terra, no corpo, aqui, no Lugar onde estou. Escutar verdadeiramente as tempestades e ciclones, a cólera e outros surtos, novos, que cada vez mais se vão generalizar, os solos cansados e estéreis. E é também crucial sentir-se amado, conectado, parte do Lugar e da Terra, para ter vontade de agir. É desta interconectividade e pertença que nasce a nossa compaixão-acção: A prontidão para ajudar e sobretudo, para co-criar sistemas regenerativos, resilientes aos desafios que enfrentamos.

Este Sentir-se parte, que é fundamental, precisa de ser resgatado, e isso não se faz com o lado esquerdo do cérebro, com o cartesianismo, em salas fechadas e enfadonhas, nem sozinhos. Faz-se com o coração, com a intuição, com o corpo inteiro, na sala mestra da biosfera, sensorial e experiencial e em comunidade.

Fonte: Revista Economia & Mercado, Artigo Abril

Sublinho que a Academia foi dos sistemas mais coloniais em que participei, quer como aluna, quer como trabalhadora. Hoje muitas destas Instituições revestem-se de uma “modernização”, e não obstante a evolução que felizmente tem havido, o conservadorismo, e a falta de cooperação prática e efectiva com outros actores do ecossistema social, ecológico, económico, cultural, dificulta que a Educação faça o seu principal trabalho: Apoiar os alunos no seu percurso de Aprendiz-Peregrino-Praticante, que será um trabalho para toda a vida.

Susana Cravo

Susana Cravo

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