Ecoespiritualidade

Coluna de Jorge Moreira

4 MIN DE LEITURA | Revista 43

O Grande Poder Espiritual

Na Missão de Jane Goodall

Parte I

«Quando passava horas sozinha na floresta do Gombe, sentia-me parte do mundo natural, intimamente ligada a um Grande Poder Espiritual. E esse poder está comigo o tempo inteiro, uma força à qual posso recorrer para obter coragem e vigor. E, partilhar esse poder com os outros, ajuda-me a dar esperança às pessoas» (1)
Jane Goodall

Introdução

Jane Goodall completou recentemente 89 anos. Nativa de Londres, ficou primeiramente conhecida pelos estudos inovadores sobre chimpanzés, na Tanzânia e, mais recentemente, como ambientalista, percorrendo o mundo em defesa da Natureza. Fundou duas organizações dentro desse âmbito – o Instituto Jane Goodall, em 1977; e Roots and Shoots (Raízes e Rebentos), em 1991. A primeira organização, além de apoiar a investigação de campo dos chimpanzés, trabalha para proteger o seu habitat. A segunda, é um programa educativo baseado no respeito e compaixão por todos os seres vivos, que se dedica especialmente a capacitar os mais novos para missões concretas junto das suas comunidades, preparando-os para a liderança futura que se espera no mundo (2). Há, todavia, uma outra dimensão menos conhecida de Goodall, que está na base da sua visão, trabalho e dedicação – a espiritualidade.

A espiritualidade é um conceito simultaneamente simples e complexo, muitas vezes mal compreendido pela sua natureza paradoxal e por ser alheio ao controlo da mente cartesiana.

A sua dimensão é holística, embora se encontre na singularidade de cada um; a sua profundidade é inefável, embora se possa encontrar na poesia; e o seu aroma perfuma a existência, embora esteja oculto por um véu misterioso. A espiritualidade é a qualidade do espírito – o sopro logóico que anima a matéria em todo o seu esplendor, mantendo-a organizada e com sentido nos diversos níveis da existência (micro, meso e macro – do átomo à célula, da espécie ao ecossistema, do globo terrestre ao cósmico, do mais denso ao mais subtil). É nesta perspetiva que emerge a ideia de um Criador ou a existência do Grande Poder Espiritual. No sentido lato, se a vida é a manifestação do espírito na matéria, a espiritualidade é a consciência e o amor que floresce nos laços invisíveis que une a vida. A intuição e o insight místico, mecanismos de experiência direta com a profundidade do mundo espiritual, incluem inúmeras vezes a compreensão do sentido e da conexão com toda a vida. Logo, há uma dimensão sagrada contida na relação, o que nos leva desde logo a questionar: qual a relação que temos com o mundo, a Natureza e os outros seres, humanos e mais do que humanos?

Olhando para a nossa civilização hegemónica, percebemos que ela se encontra focada no progresso, desenvolvimento e crescimento material. O sentido profundo de beleza, maravilha e essência divina da Natureza, que nutre a alegria de estarmos vivos e o cuidado ético para com toda a criação, não existe na nossa sociedade e, por conseguinte, ela mostra sinais de demência, depressão, apatia, crueldade e uma tendência para o abismo.

Na nossa ânsia pelo progresso material, «não temos consciência de ter perdido algo tão essencial à vida» (3). A destruição da Natureza está intrinsecamente ligada ao estado da nossa natureza interna. E sem voltarmos a atenção para a dimensão sagrada da vida, dificilmente iremos encontrar um rumo diferente do que temos atualmente.

Jane Goodall, vivendo num mundo pautado pelo materialismo, mas com a coragem de uma verdadeira Mestre, tornou visível a sua dimensão espiritual, não menos relevante que os seus trabalhos científicos à volta dos chimpanzés. Trabalhos que forneceram uma compreensão mais real do mundo da espécie e contribuíram para derrubar a exclusividade do Homo sapiens como o único ser que usa e fabrica ferramentas, que tem pensamento abstrato, que comunica, que sofre e tem uma vida emocional e até religiosa, provendo argumentos que apoiam a ética animal, transferidos para o desabrochar de uma consciência social sobre o bem-estar das outras espécies (4). Mas a espiritualidade aliada à ecologia vai ainda mais longe, ao incorporar uma sintonia e uma reconexão com a diversidade da vida que existe no planeta, assim como pelas gemas e formações rochosas, montanhas, rios, vales, glaciares e florestas. Toda a Natureza que pulsa, criada e animada por uma Energia Logóica. Ser consciente desta sacralidade da Natureza muda inevitavelmente a nossa relação com Ela. Como diz Goodall: «Só quando entendermos, poderemos nos importar. Somente quando nos importarmos, iremos ajudar. Só quando ajudarmos, seremos salvos» (5).

Nas disposições e contextos mais relevantes que levaram Goodall ao encontro de uma ética bio e ecocêntrica e a uma sabedoria mais profunda, que liga razão e intuição, podemos encontrar uma infância em contato com a Natureza e a interação com o seu cão, que lhe forneceu uma sensibilidade especial de sentir e percecionar a vida mais do que humana; uma juventude marcada pela paixão a um pároco da Igreja Congregacional, que a levou a aprofundar o Cristianismo e a aproximar-se da mensagem de Jesus; o interesse posterior pela Teosofia, que a fez frequentar um curso dado por uma mulher carismática, onde mergulhou em temas como o karma, a reencarnação ou a meditação; os seus insights místicos, que a acompanharam mais ou menos por toda a vida; a sua imersão na Natureza selvagem em África e a sua formação académica. Sobre este último ponto, a dimensão cartesiana, ateia e agnóstica de muitos dos seus colegas colidiu em parte com o conhecimento empírico de Goodall, mas esta não se deixou afetar de todo, como revela: «por sorte, quando cheguei a Cambridge eu tinha vinte e sete anos e as minhas crenças já tinham se fixado para que eu não fosse influenciada por essas opiniões» (6), mantendo assim viva e sua dimensão espiritual.

Este artigo, dividido em várias partes nesta crónica, pretende tornar visível a eco-espiritualidade em Jane Goodall, suas influências e alguns testemunhos na primeira pessoa.

(Continua)

Notas de Rodapé

  1. (Goodall et al., 2021, Chapter Eco-Grief)
  2. (Sociedade Portuguesa para a Educação Humanitária, n.d.).
  3. (Vaughan-lee, 2015)
  4. (Taylor, 2005, p. 601)
  5. (Goodal apud Possas, Paula J.; Taylor, Bron in Taylor, 2005, p. 707)
  6. (Goodall & Berman, 1999, Chapter Introduction)

Referências Bibliográficas

  • Goodall, J., Abrams, D., & Hudson, G. (2021). The Book of Hope – A Survival Guide for Trying Times. Celadon Books.
  • Goodall, J., & Berman, P. (1999). Reason for Hope – A Spiritual Journey. Warner Books.
  • Sociedade Portuguesa para a Educação Humanitária. (n.d.). Jane Goodall’s Roots & Shoots Portugal. Retrieved April 18, 2023, from https://www.rootsandshootsportugal.org/
  • Taylor, B. (Ed.). (2005). The Encyclopedia of Religion and Nature. Thoemmes Continuum.
  • Vaughan-lee, L. (2015). Sustainability, Deep Ecology, & the Sacred. Parliament of the World’s Religions. https://parliamentofreligions.org/articles/sustainability-deep-ecology-the-sacred/

Toda a Natureza que pulsa, criada e animada por uma Energia Logóica. Ser consciente desta sacralidade da Natureza muda inevitavelmente a nossa relação com Ela. Como diz Goodall: «Só quando entendermos, poderemos nos importar. Somente quando nos importarmos, iremos ajudar. Só quando ajudarmos, seremos salvos».

Jorge Moreira

Jorge Moreira

Ambientalista e Investigador

Licenciado em Ciências do Ambiente, Minor em Conservação do Património Natural, mestre em Cidadania Ambiental e Participação, pela Universidade Aberta, e Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É bolseiro FCT e investigador do Centre for Functional Ecology, Science for People & the Planet da Universidade de Coimbra.
É vice-presidente da FAPAS - Associação Ambientalista para a Conservação da Biodiversidade; dirigente da Sociedade de Ética Ambiental, dos movimentos cívicos Alvorecer Florestal e Aliança pela Floresta Autóctone.
É autor de vários artigos dedicados ao ambiente e voluntário em inúmeras ações de defesa, conservação, promoção e recuperação do património natural.
Tem desenvolvido investigação nas áreas da Ética Ambiental, Educação Ambiental, Sustentabilidade, Alterações Climáticas, Ecologia Profunda e Ecologia Espiritual, onde tem realizado conferências e promovido os temas.

shakti@sapo.pt