Mil-em-Rama

Coluna de maristela barenco

3 MIN DE LEITURA | Revista 43

Descolonizando Consciências,
Afirmando Eco-Mitologias

Há um movimento imenso, pulverizado e planetário, que se descortina a cada dia – com contornos filosóficos, ambientais, terapêuticos e artísticos – que se coloca a pensar ou repensar, sobretudo, o lugar e a condição do sujeito humano na complexa teia da vida. Os objetivos, diversos, dentro desse movimento, intentam fundar outro lugar para esse sujeito, menos central e determinante.
A grande questão que observo, como pensadora que se encontra a partir da Universidade, é que a “humanidade” parece ter a consciência de se ‘sentir parte’ da natureza, mas nem sempre consegue fazer coincidir o verbo SABER com o verbo SENTIR. Pode ser que em um tempo remoto, saber e sentir fossem realidades muito íntimas. Mas hoje, não necessariamente são. Então, a pergunta motivadora de meus estudos filosóficos se repete:

“Como se passa de uma condição de SABER-SE e QUERER-SE parte (perspectiva racional),
para a condição de SENTIR-SE parte (pertencimento emocional) da natureza?”.

Essa pergunta precisa ecoar, uma vez que saber e querer não têm força suficiente para uma transformação.
O tema de uma descolonização – que é sempre amplo e múltiplo, revela que a espécie humana se encontra em uma realidade de ambivalência e contradição permanentes. Por um lado, a espécie humana tem se constituído de forma arrogante. No relógio biológico da Terra e da Vida, esta espécie despontou nos últimos minutos do relógio, mas vem ocupando uma centralidade que não lhe pertence como espécie, pensando ser a espécie mais importante que pode dominar as que lhe antecederam. Contudo, tal espécie carrega uma experiência de um “trauma de base”, que tem a ver com o processo de disjunção e cisão a que vem sendo submetida há séculos, nas muitas relações de colonização que atravessam o planeta, algumas vezes estando na pele do colonizador, e outras, na pele do colonizado.
Dessa ambivalência desponta algumas consequências. Quero destacar, neste texto, duas: A primeira é o fato de termos concepções ecológicas-terapêuticas-espirituais que se assentam sob premissas – filosóficas, políticas, espirituais, epistemológicas e científicas -, incompatíveis com os princípios que temos postulado. Formulamos ideias que possuem uma contradição de base, como a ideia, na Universidade, de se fazer ciência ambiental com fundamentação cartesiana, ainda que o cartesianismo seja uma das causas da crise socioambiental. A segunda é que embora entendamos que o processo formal de colonização histórica tenha se concluído, há um tipo de colonialidade que persiste, não como poder, mas como forma de pensar e saber, transformando relações de potência em relações de continuísmo. Queremos mudar, desde que não mexemos em um padrão relacional.
Queremos realidades emancipatórias em nossos discursos macropolíticos, mas refundamos os modos coloniais de viver em nossas práticas cotidianas, através de modos hegemônicos de pensar, mas que não estão em um nível representativo, apenas das ideias, mas na dimensão que Guattari e Rolnik (1986) denominaram de “teatro dos afetos”, e nas formas de modelização a que estamos continuamente submetidos, e que se expressam na forma como vivemos, trabalhamos, amamos, nos relacionamentos. Daí que, para Guattari e Rolnik (1986),

“se o desejo não tiver tomado uma posição revolucionária, não há mudança”.

No cotidiano e nas micropolíticas, os desejos escapam, evidenciando uma concomitância entre modos de referência antagônicos: de um lado, discursos políticos decoloniais; por outro lado, práticas coloniais cotidianas. Precisamos, mais do nunca, de coletivos que estejam comprometidos com modos de singularização e de interrupção de um modo de viver a subjetividade.
Nesse cenário e nesse contexto, as Eco-Mitologias constituem, para mim, narrativas circulares e dialogais, que fundam mundos outros, que reintegram o sujeito que se sente agora parte da natureza, e que possibilitam um trabalho de regeneração de sua consciência: não há mais saber que se desconecte de sentir.

1) GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica. Cartografias do Desejo. 2ª. ed.
Petrópolis: Vozes, 1986.

Dessa ambivalência desponta algumas consequências. Quero destacar, neste texto, duas: A primeira é o fato de termos concepções ecológicas-terapêuticas-espirituais que se assentam sob premissas – filosóficas, políticas, espirituais, epistemológicas e científicas -, incompatíveis com os princípios que temos postulado. Formulamos ideias que possuem uma contradição de base, como a ideia, na Universidade, de se fazer ciência ambiental com fundamentação cartesiana, ainda que o cartesianismo seja uma das causas da crise socioambiental. A segunda é que embora entendamos que o processo formal de colonização histórica tenha se concluído, há um tipo de colonialidade que persiste, não como poder, mas como forma de pensar e saber, transformando relações de potência em relações de continuísmo

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais

Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.

Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF

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