artigo de ana catarina infante
Altar
3 MIN DE LEITURA | Revista 43
Sinto a luz do sol a serpentear, como a água de um rio, e a invadir, naturalmente, gentilmente, todas as células e todas as vidas dos meus dias. Sinto o seu cheiro, o seu toque na pele e nas minhas vísceras, para além daquilo que a limitação dos meus olhos conseguem ver. Consigo ouvir o aumento progressivo desta energia vital em tudo o que me rodeia. Ouço, também, dentro de mim, a sua voz.
Esta luz conta uma história. Conta-a a todos os meus sentidos. Conta-a a todos os sentidos do mundo, que guardam as memórias desta história, dentro de si e que me devolvem o resultado desta relação. Os pássaros cantam. As abelhas fazem amor com as flores. Cada canteiro e bocadinho de terra, na cidade onde vivo, é uma orgia de cor, que passa, muitas vezes, despercebida aos mais desatentos. Erguem-se altares ao sol, dentro de nós. Dentro de todos os seres. Ao nosso sol interno. Resplandece-te. Ilumina TODOS os recantos de cada cor tua. Olha, também, e jamais negligenciando, ao espelho a tua violência e guerra internas. Não te deixes cegar pelo excesso da tua luz.
Sente a atração da e pela Vida pulsar em ti. É altura para relembrar que fazer Amor é condição fundamental para a continuidade da Vida e descontinuidade da identidade de que quem achamos que somos. Como Georges Bataille refere tão bem, “somos seres descontinuados.” Atraímos, até nós, as relações vivas das quais o nosso próprio corpo é feito. O meu/ teu corpo é um bacanal de sexo. De atrações fatais. De relações que vivem a Vida na descontinuidade da sua individualidade. Células, vírus, bactérias que se morrem para a Vida. Humildade sábia e transcendente. Dizemos que os corpos humanos são proeminentes pela consciência racional da Vida. Diria que somos imensamente distantes do Corpo da Vida e logo imensamente magros, raquíticos, em sabedoria. O Sol relembra-nos que somos Altar dessa descontinuidade. Na relação com o outro perdemo-nos de nós próprios e, quando isso acontece, encontramos a realidade de quem somos. Atraímo-nos, uns aos outros, para a lei da Vida. Fazemos Amor, procuramos o prazer e o orgasmo, para não nos esquecermos dela. Não nos queremos “perder”, racionalmente, não queremos desaparecer, mas o nosso corpo procura perder-nos.
Um altar é um espaço espelho daquilo que somos. É um reflexo do nosso espaço interno. Da nossa autoridade interna. Nossa. De mais ninguém. É um cinema vivo da nossa vida. É a fotografia de quem escolhemos ser. Com quem nos queremos relacionar e/ou relacionamos (e as pessoas/ entidades com quem nos relacionamos falam muito sobre quem somos). É um sol vivo na descontinuidade do tempo das chuvas. Lembrança do nosso templo carnal vivo de primavera, verão, outono, inverno e primavera.
Fazer um altar é manifestar o espaço invisível, e muitas vezes inconsciente, de quem somos a cada momento. O altar pode mudar. Se assim nós o fazemos também. Pode ser uma tela em branco. Espaço vazio. Pode conter dúvida e incerteza. Ser um labirinto vivo e uma linha reta. Conter escuridão. Podridão. Disfarces obscurecidos que abraçamos com e sem vergonha.
Acender uma vela no nosso altar é acender a nossa própria vela. É lembrar o nosso nascer do sol, depois do resplandecente adormecer. É acender e rezar à nossa potência interna. É relembrar que somos sacerdócio e divindade. Inferno. Lúcifer. Kali. Ataegina. Endovélico. Tudo expressões visíveis do Amor encarnado. Da forma como nos vemos e sentimos. Do que trazemos no corpo. Do que escutamos da vida. Quando acendemos a vela do nosso altar rezamos a nós próprios. Que todas estas formas se revelem, na luz do sol, enquanto caminhamos, conscientemente, neste corpo, neste mundo. Que elas falem através de nós .Que sejam o nosso passo. A nossa voz. Que sejamos a sua força. O seu Amor e compaixão.
Não existe nenhum anjo que não caminhe connosco e que habite fora de nós. Não existe nenhum santo, santa, Deus, Deusa, arquétipo, divindade, infernal e glorificada à moradia dos céus, que viva fora do Amor. Quando rezamos a nós próprios todas as formas do Amor estão presentes. Quando rezamos a nós próprios essas formas exponenciam a sua força já presente. Se ela está no altar é porque já a sentimos dentro. Já fala connosco há muito tempo.
Somos o canal receptor e sagrado do Amor, de encontro ao corpo da Terra. Agulha de acupuntura. O nosso corpo é o seu altar sagrado onde é possível a sua manifestação, como todos os outros corpos da terra. Somos o Amor encarnado. Altar da sua manifestação. Tal como ele se manifesta em nós, o altar que fazemos reflete mais espelhos de tudo o que ele é e onde ele toca. Nada está fora do Amor.
Quando rezas a algo fora de ti. Não o irás encontrar.
Olha o teu altar. Encontrar-te-ás.
Um altar é um espaço espelho daquilo que somos. É um reflexo do nosso espaço interno. Da nossa autoridade interna. Nossa. De mais ninguém. É um cinema vivo da nossa vida. É a fotografia de quem escolhemos ser. Com quem nos queremos relacionar e/ou relacionamos (e as pessoas/ entidades com quem nos relacionamos falam muito sobre quem somos). É um sol vivo na descontinuidade do tempo das chuvas. Lembrança do nosso templo carnal vivo de primavera, verão, outono, inverno e primavera.
Ana Catarina Infante
Enfermeira e Autora
Enfermeira. Trabalha na Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital da Luz em Lisboa.
Fundadora da comunidade de doulas do fim da vida em Portugal – doulasdofimdavida.com
Autora do livro a passagem, da oficina do livro.
Acredita que o Amor do mundo é proporcional ao número de florestas e rios selvagens que existem, dentro de nós.
Aprofunda os seus conhecimentos em somatic experiencing e ecologia profunda.
Uma sempre estudante de si própria.