Onde mora o coração, histórias e paisagens

Coluna de Ana Sevinate

2 MIN DE LEITURA | Revista 43

A integridade das flores

amorosamente dedicado a 14 mulheres e a um duende

No medo de se perder, perde-se a alma. Na ameaça do abandono, ficamos presos por um fio. Na ilusão da necessidade, desmembramo-nos e rendemo-nos a ser só uma parte. De nós. Perde-se a alma. Sobrevive no escuro por não poder ser vista inteira. Na fantasia da falta, sucumbimos no desamor. Na insegurança e na preocupação perdemo-nos aquém das brumas. Escutemos por isso as flores, já que na explosão florida e fértil da primavera existe a integridade singela das cores.

Escutemos também o eco da gruta que abriga a origem e o retorno. Escutemos a rocha e o seixo que acolhem um amor que se quer firme, livre e vivo. E escutemos a pedra que se deixa furar pela força da senhora do lago, da cascata e do orvalho. Pois na integridade das flores, que se deixam diluir nos rios e nas tinturas, vive o verbo transbordar. Transborda-se a devoção, o serviço e o propósito. Transborda-se a vontade e a voz, transborda-se a indignação e o afeto. 

Escutemos também o salto da lebre, já que nele pula a liberdade de acreditar. É o salto da fé. Da fé no chão, na irmandade e no músculo. Da fé que só existe livre. Concebida na integridade das flores, no ventre da terra e no eco da gruta. E na liberdade da fé, recupera-se a alma. Na certeza do chão, suspendemo-nos em círculo. E na abundância das mãos, nas mãos, escolhemos a integridade das flores. Plantadas no monte, semeadas nas águas, adormecidas, eternamente, na toca. Escolhemos entrar na noite e beber da fonte. Somos o sonho dela.

Enquanto isso, a lebre morre-se na subida. E nós? Morremo-nos solenemente com ela. Onde a dor, da alma e do corpo, se escorre por entre intenções e se deslaça por entre bênçãos. Onde a vergonha se despe por entre as batidas do coração e do tambor. Onde a memória da água, do altar e da pele se acende na chama que alumia o caminho. Onde a cabeça, do círculo e do dragão, garante que ninguém se perde sozinho. Onde a cauda, do círculo e do dragão, escuta o ritmo e o passo de cada alguém.

Escolhemos ser as flores, que na sua integridade jamais abdicam das suas cores. Jogam-se do alto, sucumbem à boca da lebre, sabendo que o sentido da sua alma, e das suas cores, vive muito para além da sua permanência. Nadam no vento desencarcerando sementes e descarnando relembranças. Na fé somos sementes, soltando a prece dos nossos ossos e a gentileza do nosso canto. Tricotando a renda e o crochet da teia. Que se estende, une e aperta através de cada cancela e de cada abraço. Pois sem o laço da irmandade, a fé fica laça e sem fé, a liberdade (co)rompe-se. E quanto maior for a teia e mais uno for o fio e mais apertado for o ponto, maior é a liberdade. De acreditar. De ser flor, na sua integridade.

Enquanto isso, pasma-se a lebre na contemplação à lua. E enquanto isso, a senhora do freixo entrelaça as suas raízes às nossas. E no verbo transbordar, da alma, o caminho do labirinto é o do regresso espiralado. E cada flor, da macieira, do jarro, da prímula e da camomila, na sua sagrada integridade é lamparina luzidia e transparência cristalina, brilhando quando a visão se turva e a noite do coração nos alcança. Com elas, atravessámos. E transbordámos.

E sem que o medo desaparecesse, demos-lhe a mão.

Escutemos também o salto da lebre, já que nele pula a liberdade de acreditar. É o salto da fé. Da fé no chão, na irmandade e no músculo. Da fé que só existe livre. Concebida na integridade das flores, no ventre da terra e no eco da gruta. E na liberdade da fé, recupera-se a alma. Na certeza do chão, suspendemo-nos em círculo.

Ana Sevinate

Ana Sevinate

Psicóloga clínica e psicoterapeuta

Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida. 

Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.

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