história de maria joão lucas

A descoberta de Vocífera

5 MIN DE LEITURA | Revista 43

Bem no coração de um escuro, denso e selvagem bosque existe uma clareira e nessa clareira há uma modesta casa, onde vive o feliz e já não muito jovem casal Jee, cujo maior desejo era ter um filho.

Até que um dia foram abençoados com um bebé há muito esperado e desejado.

O parto decorreu sem complicações e a mãe deu à luz uma linda menina.

Os pais assustaram-se, pois apesar de visivelmente estar a chorar a criança não emitia qualquer som. Ficaram muito apreensivos durante um tempo, mas, ao perceberem que era sã, habituaram-se ao seu silêncio.

Dadas as circunstâncias, a feliz família Jee resolveu dar-lhe o nome de Vocífera.

Aquele pequeno ser cresceu a olhos vistos com grande desenvoltura, apenas não soltava um único som. Este casal tinha uma compleição pequena, feições delicadas e cabelos louros encaracolados, porém a menina, pelo contrário, era atlética, de tez morena, com um abundante cabelo liso escuro como uma noite sem lua e uns enormes olhos azeitonados muito negros sempre atentos, os pais nem pareciam ser seus.

Corria solta e feliz por entre os ramos das árvores e com os animais do bosque. Conhecia todos os cantos e recantos, desde os mais sombrios, escondidos do sol e do ar, até ao topo das árvores onde se via o céu, todos os lagos, cascatas e linhas de água.

Apesar de falar e cantar, mesmo sem voz todos os animais da floresta a entendiam bem, misturava-se com todos sem qualquer medo, respeitando sempre as distâncias de cada um no seu espaço vital. Havia dois que a acompanhavam mais de perto, a sinuosa serpente que se escondia nas imemoriais pedras quentes, durante o dia e a pequena raposa de pelagem mutante, parda na primavera, vermelha no outono e branca no inverno, durante a noite. Eram as duas grandes companheiras de jornada e aventuras.

Nos dias curtos e longas noites em que a grande luz do céu se acendia bem redonda, Vocífera saía sorrateiramente de casa e percorria solta e feliz a floresta com os pés descalços a bater nas pedras, a fazer o pó da terra levantar-se, a vergar as plantas sob si e os animais da escuridão a esconderem-se à sua passagem. O entendimento das forças da natureza era poderoso e puro o que lhe conferia alento e vigor para ser quem era.

Além do seu absoluto silêncio havia dois segredos que guardava no peito, o primeiro era que ao pé da água, quando se molhava, a pele das pernas escamava e o segundo, sentia um imenso vazio dentro de si, uma saudade de algo não palpável completamente desconhecido.

Perto do décimo quarto aniversário a sua mãe adoeceu, o médico da aldeia de tudo fez, mas não obteve melhoras assinaláveis. Então o pai de Vocífera resolveu convocar a meia-irmã da esposa. Esta tia misteriosa, surgiu numa manhã de nevoeiro como que se se materializasse do ar, tinha uma compleição muito semelhante à da sua sobrinha.

De um saco azul-escuro em tecido aveludado que consigo trazia, retirou múltiplos e estranhos objetos, frascos de vidro com líquidos de diversas cores, bolhas arco iris e esferas de pérola de vários tons e outras coisas como pós e poções, algas e conchas.

Com os seus grandes olhos muito vivos Vocífera espreitava e observava todos os gestos e artefactos que eram retirados daquele saco que parecia ser mágico. A tia sabendo da sua condição e apercebendo-se do seu espanto e interesse ia-lhe explicando numa voz doce, melodiosa e calma para que serviam todos e cada um dos objetos daquela parafernália.

Aos poucos a mãe foi melhorando, quando já se encontrava mais forte e podia viajar foi aconselhada a acompanhar a meia-irmã até às terras longínquas onde morava. Vocífera acompanhou-as. Viajavam já há uns dias quando a paisagem começou a alterar-se, o bosque tornou-se menos frondoso, as árvores foram dando lugar a arbustos, o aspeto da terra
modificou-se passando por múltiplas tonalidades desde a cor fértil castanho-escuro até um areado cada vez mais claro.

A qualidade do vento e do ar foi-se transformando, cada vez mais leve e quente, por fim começou a sentir-se uma humidade e um aroma completamente enigmáticos, todas estas coisas despertavam sensações insondáveis que acordavam aquela antiga saudade de algo.

Até que chegaram a um promontório que se abriu numa imensidão de areia e água com um odor muito diferente de tudo o que jamais havia sentido. A textura da terra era solta, as plantas rasteiras ondulavam ao sabor de uma brisa fresca, as cores da água iam do verde transparente ao azul profundo, os ruídos eram inauditos, tudo era novo, luminoso e deslumbrante.

Assim que viu o mar reconheceu o seu lugar de saudade, conhecia as águas cálidas e calmas dos lagos onde habitualmente nadava, as borbulhantes das fontes, ribeiras e cascatas, por vezes ensurdecedoras, mas nada a tinha preparado para aquele cenário.

Os olhos de Vocíefrea catrapiscaram com tamanha imensidão de luz, terra, ar e paisagem, as aves desenhavam traçados novos na brisa num céu aberto de um intenso azul-claro.

Ajoelhou-se na areia e saboreou cada grão aquecido pelo sol a passar por entre os dedos, olhou para as ondas marulhantes e foi-se apercebendo das diferentes texturas e temperaturas. Correu até à beira d’água, sentiu-a gelada como a do poço lá de casa, porém borbulhante, com espuma, tinha um aroma muito diferente e um sabor ainda mais extraordinário, era salgada impossível de beber.

Toda aquela ambiência a cativava como um íman ao qual não conseguia resistir.

(foto MJL – 2014)

Por ora era tempo de instalar a mãe na confortável casinha branca onde morava a tia. A mãe foi acomodada num quarto luminoso com uma vista desafogada para o mar e com as terapias, o ar fresco e renovado a sua saúde foi-se restabelecendo.

Como Vocífera pouco tinha para fazer, começou então a sua aventura exploratória das imediações como o faria na sua floresta, indo cada vez mais longe, pelas poças na maré baixa e pelas margens das ondas na maré alta.

Aprendeu a reconhecer alguns seres do litoral, como caranguejos fugidios, anémonas de múltiplas cores, peixinhos retidos nos baixios e muitos outros seres, estrelas-do-mar tão diferentes das do céu, também estas distintas do céu que tão bem conhecida visíveis no topo das árvores do bosque onde morava.

Este céu parecia-lhe colossal, profundo, um firmamento infinito, especialmente em noites de lua negra em que no manto aveludado escuro se mostravam configurações muito longínquas, era imponente e esmagador, Vocífera passava muitas horas em contemplação de todas estas maravilhas que se iam abrindo para si.

Até que um dia se encheu de coragem e resolveu entrar naquelas águas de mil cores, mais revoltas. Começou a nadar e percebeu que se sentia mais leve, para seu espanto as escamas das suas pernas pareciam ter acordado e recebeu uma cauda com barbatanas como vira nos peixes. Com ela começou a nadar cada vez mais rápido e por fim mergulhou. Todo um novo mundo se abriu à sua mercê, a sua boca falou e cantou, como de costume, só que aqui, neste mundo subaquático, a sua voz tinha som e era admirável, esplêndida, extraordinária.

Descobriu que conseguia chamar peixes prateados e coloridos, golfinhos atrevidos, baleias elegantes e até as rápidas focas, de pelagem semelhante à da sua amiga raposa, dengosas, com grandes olhos semelhantes aos seus e que lhe respondiam, todas as criaturas a reconheceram.

Chamou igualmente os seres místicos da sua espécie com quem principiou a conviver e a aprender os seus ancestrais costumes, sentia que se tinha encontrado, foi como um retorno ao lar, onde se sentia completa, encontrara a sua voz, tinha som, as suas escamas tinham função para a impulsionar num nadar fluído, elegante e veloz, e aquele vazio de saudade antes sentido desvaneceu-se por completo.

Assim, quando a sua mãe com a saúde completamente reestabelecida pode regressar a casa Vocífera quis ficar. Ao despedirem-se deu-lhe de presente um magnífico búzio ao qual poderia encostar o ouvido e comunicar consigo, onde, em fundo, se escutava o som das ondas do mar.

Tinha encontrado a sua voz, o seu espaço no seu tempo, o seu natural íntegro, enfim, o seu lugar feliz.

Descobriu que conseguia chamar peixes prateados e coloridos, golfinhos atrevidos, baleias elegantes e até as rápidas focas, de pelagem semelhante à da sua amiga raposa, dengosas, com grandes olhos semelhantes aos seus e que lhe respondiam, todas as criaturas a reconheceram.

Maria João Lucas

Maria João Lucas

Ser universal, encarnada neste planeta como animal da terra, mamífero, hominídeo do sexo feminino, sem pertença, é onde estou sacralizando as criações de locais com alma, que sou.

Sonhadora e intérprete de histórias, memórias e experiências dos lugares internos e externos que se queiram expressar, é em escuta ativa das energias subtis que traduzo e entreteço as palavras, estabelecendo conversas sem fim, por nunca acabarem ou por serem sem qualquer objetivo.

Instagram