artigo de maria trincão maia

Um Café e um Banco

4 MIN DE LEITURA | Revista 42

No mundo do design gosta de dizer-se que é a profissão mais importante do universo, que acarreta uma enorme responsabilidade sobre como o mundo é projectado e que imagem tem. Existe uma certa tendência ao salvadorismo, uma existência no limiar do divino da profissão. Somos na verdade quase deuses. E se precisarem de provas, podemos sempre pôr os olhos na nova máquina de café da Delta desenhada pelo mais famoso designer do mundo (ocidental) Philippe Starck. Um homem, branco, francês, conseguiu vencer a gravidade e fazer com que o café nascesse de baixo do próprio copo. Introduzindo assim no mercado um copo que só é usado naquela máquina, que mantém o sistema de cápsulas de plástico e que, com certeza, vai ser eleito internacionalmente como o rasgo de genialidade vencendo vários prémios.

Este feito irá ser estudado em faculdades de design que perpetuam, a maior parte delas, a homogeneidade de referências. Homens, brancos, europeus.

O que me preocupa não é o Philippe Starck ou a Delta, o que realmente me preocupa é a perpetuação de uma cultura capitalista e consumista no mundo do design enquanto este se considera a chave de ouro para salvar o mundo. O que torna tudo muito tenebroso.

Chegamos a um ponto em que é preciso perguntar: será realmente necessário fazer isto?

O problema é que só meia dúzia estão a chegar a este questionamento. Porque muitas vezes a resposta é: não, não é necessário fazer isto. Ou ainda mais radical: é ético fazer isto? E esta perguntinha apenas, estas conjugações de palavras só é feita por alguns, não que sejam iluminados, por norma são feitas por pessoas que já sentiram na pele o que faz realmente funcionar o sistema e a modernidade.

E o que é a Ética? Como podemos nós compreender a ética onde todos cabem quando a própria ética dada por estas bandas é de senhores de barbas brancas. Porque Ética e Filosofia andam de mãos dadas. Bem e voltamos aos senhores de barbas brancas. Porque o que não é Filosofia ocidental não é Filosofia. É outra coisa qualquer.

Recapitulando, temos o design (arquitetura, engenharia…) em que as maiores referências são homens, brancos, europeus e em grande parte de classe media alta/classe alta. Temos a Ética e a Filosofia que se mantém assentes em homens, brancos, europeus e provavelmente nas mesmas classes que os anteriores que isto de pensar precisa de financiamento. Obviamente que para efeitos jocosos estou a generalizar.

Mas como podemos nós em design pensar que conseguimos salvar o mundo se continuamos a ir às mesmas fontes de sempre? Diz-se que Einstein disse: a definição de insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar resultados diferentes. Também se diz que afinal a frase não é do senhor acima referido, mas sim de uma mulher chamada Rita Mae Brown que por acaso é uma escritora feminista. Será assim tão de estranhar que uma frase dita por uma mulher fosse atribuída a um homem? É arranjar problemas onde não existem.

Toda esta sucessão de pensamentos e ligações, que por esta altura já fez alguns desistirem do meu texto, serve para explanar a importância de repensar a forma como os designers fazem design, e como as pessoas se relacionam com os objectos e imagens do seu cotidiano. Existe, uma constante comum em tudo isto, a história de opressão. Queremos manter uma imagem que o design é algo imaculado, que não tem qualquer tipo de responsabilidade social e política que abraçamos as metodologias de Design Thinking sem pestanejar. É confortável, é nos entregue, novamente por um homem, branco, desta vez norte-americano. Cheira a sonho americano, a grandeza, a mudar o mundo. Não questionamos que este defenda o capitalismo democrático, que se defenda o perpétuo crescimento quando não há mais por onde crescer. Onde o mundo não aguenta mais crescimento, onde 1% detém mais de 50% da riqueza do mundo inteiro. E vamos continuar a crescer para onde? Às custas de quem? Design Thinking entrou em todo o lado, há cursos para todos e para tudo, é uma receita que resulta sempre. É a receita que vai salvar o mundo. Mas qual mundo?

Deveria ser uma necessidade fundamental questionar os supostos alicerces do mundo do design, aqueles que fazem com que haja uma elite que possa fazer design, essa que se mantem a faze-lo há décadas e séculos, que são estudados e bajulados.

Porque como se pode criar algo disruptivo (palavra super na moda) quando a estrutura referencial se mantem a mesma? Ninguém inventa nada de novo, isso é um mito. O culto da personalidade, individualista, solitária e genial é o culto ao homem. Sempre. Continuamos a defender que existe um salvador, um génio. Philippe Starck não trabalha sozinho no seu atelier, tem uma equipa de designers que trabalham com ele, que trabalham por ele, e que nesta dinâmica acham que são escolhidos por estar tão perto de deus.

Mas em que mundo?

Do outro lado desta barricada, as vozes do sul global começam finalmente a ser ouvidas. Elas existiram sempre, mas eram abafadas pelo barulho das autoaclamações eurocêntricas. Vozes que falam de outras formas de viver e de fazer design. Inspiradas no movimento Zapatista que reclama um mundo com muitos mundos lá dentro. Falam de Pluriverso, de diversidade e de complexidade. Para isso é preciso começar a compreender a função opressora que o design tem muitas vezes e como a cegueira da imaculidade de uma actividade que reúne em si arte e engenho pode ser tão prejudicial para a continuação de uma sociedade injusta. Em próximos artigos irei adensar mais estes pensamentos sobre design, mas se por algum motivo acha que estas questões dizem respeito só a quem exerce a profissão de designer deixo-lhe a seguinte:

Estes bancos foram especialmente desenhados para tornar impossível às pessoas se deitarem neles, que no fundo, torna a vida de quem está em situação de rua mais difícil. A pergunta que eu coloco é a seguinte: é ético faze-lo? É ético municípios pedirem a designers que desenhem peças que são abertamente discriminatórias para que o campo visual das cidades seja “higienizado” da injustiça social? É ético um designer aceitar fazer este trabalho?

Para que mundo desenham os designers?

Para isso é preciso começar a compreender a função opressora que o design tem muitas vezes e como a cegueira da imaculidade de uma actividade que reúne em si arte e engenho pode ser tão prejudicial para a continuação de uma sociedade injusta.

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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