Ciclos da Terra e da Alma

Coluna de IRIS LICAN GARCIA

3 MIN DE LEITURA | Revista 42

Sento-me na escada 

Sento -me na escada

A noite caiu na gentileza brutal do Inverno.

Parecem contrários não é?

Mas não são.

A vida selvagem é feita de continuidade e complementaridade: sim, o Inverno como qualquer outra estação é brutal e gentil, entre tantas outras coisas, ao mesmo tempo.

Faz-me lembrar que para os proto-Celtas Brigid, a Deusa Brilhante é também a Senhora da Noite. Que sentido tem a estrela sem o céu nocturno? Que sentido tem o Sol se não nascer da noite e nela repousar? Para haver sentido há continuidade, não um ou o outro mas um e o outro.

As culturas sem conceitos duais são as que melhor entendem que tudo são processos que se entrelaçam noutros processos: rios e afluentes fluindo num ciclo de águas ininterrupto e contínuo mas nunca o mesmo.

Sento-me na escada entre plantas e gatos e reflito.

Todo o dia o dia inteiro cuido de me regular.

Ao fim do dia o corpo está elétrico. Ainda.

As dores vão e vêm numa cadência ritmada. Já as conheço, não lhes quero mal. Estão aqui parte de um processo, são uma linguagem que preciso de escutar e aprender porque trazem notícias de partes profundas de mim.

Sou um rio aprisionado numa barragem e estou a desconstruir pedra a pedra este muro.

A coluna vertebral tem um tremor que vibra, o estômago aperta e a respiração continua, presente e consciente, a atravessar o espaço com delicadeza.

Quanto mais tempo para a cura?

Quanto mais?

Foram anos, décadas, a criar um padrão de sobrevivência. Para proteger criou um preço a pagar, mas funcionou até poder ser desnecessário.

Sentir dor é finalmente um suspiro de alívio.

Só em segurança podemos sentir dor, em perigo lutamos, fugimos, congelamos mas não podemos sentir porque nos é demasiado ameaçador.

A dor é o princípio da cura.

A fada negra que traz a benção mais importante: a do início de um novo caminho.

Por fim sinto o cansaço. Os dias são desiguais. A sensibilidade é o dom trazido pela exaustão e que nos permite perceber, por fim, o amparo abençoado do chão.

Não se apressa o processo de cura: haja reverência. Como pode algo que demora anos a criar curar depressa?! Não somos máquinas nem no corpo, nem na mente, nem no coração.

Há um labor dedicado celular a acontecer, consciente e inconsciente.

Respiro.

Não aceito mais não estar no corpo para não sentir o desconforto.

Respiro.

Não me abandono e não abuso de mim, nunca mais.

Respiro.

Só eu sou responsável de reconhecer e comunicar os meus limites e é fundamental que os aceite. Reconhecer e colocar limites requer potência, é força e foco para quebrar a ideia de seguir sempre avante ainda que quebradas e sem qualquer capacidade.

Respiro.

Hoje ao contrário de no início, ser eu é suficientemente bom. É tanto mesmo que não faça nada.

E como só eu vivo comigo todos os momentos de toda a minha vida devo-me respeito e lealdade. E muito amparo quando me engano no âmago do exercício da minha profunda humanidade.

Respiro.

Sou Terra selvagem e não monocultura. Sou um bosque em vias de recuperar da devastação de um extrativismo atroz, primeiro imposto pelos outros e depois internalizado por mim. Demora. Confio.

Respiro.

Hoje percebo que a minha liberdade não é a transcendência dos meus limites mas o encontro estruturante do seu amparo.

Que a minha capacidade de escolher gentileza em vez de intensidade é um sinal de saúde: finalmente existe em mim auto-preservação. A minha fragilidade é um hino: não tenho nada a provar a ninguém e em nada diminui a potência que me habita.

Respiro e agradeço.

Afinal, estas dores já me deram tanto. E ainda estou e estarei no caminho.

Se eram necessárias? Não as romantizo, há tantas formas de chegar à consciência e claro que não podem nem devem passar todas pela dor, tão pouco a podem excluir completamente.

Respiro e transpiro palavras água neste texto que relembra:

Por fim existo porque me reconheço não uma identidade fixa mas um fluxo, um processo.

Sou um rio no retorno do caudal.

Estas pedras que me encolhem voltarão a ser montanha, osso da Terra, casa de musgo e líquen.

Eu voltarei a ser água.

Volto ao meu corpo e não o desamparo mais porque ele não merece jamais ser objetificado, nem na pressa da cura e na violência de querer um resultado final. Este corpo é Terra, feito de elementos, animais, plantas, minerais. É Alma.

Volto ao início maior, com humildade, leveza e Amor. Que são a única verdadeira força.

 

E honro quem inspirou estas palavras ao confiar-me as suas dores e ousar tecer reparação.

Bem como honro quem as lê e sente inteiramente.

Todos e todas sofremos sem ninguém ter visto, temos isso em comum.

Temos mistérios internos que ninguém imagina.

Partes de nós que ainda não conhecemos e estão a ser paridas nestas laboriosas dores de parto que deixarão para trás partes de quem fomos e  farão nascer partes de quem seremos.

Somos quem está parindo, a parteira e quem está nascendo.

Temos isto em comum. A humanidade.

Que na diferença de opinião o possamos lembrar sempre.

Buscamos a reparação e a serenidade.

O caminho até lá é uma peregrinação e depois de chegar é uma prática constante diária, porque é o cuidar que sustém o gerúndio do curar contínuo.

 

” Come healing, come into my bones.

Come healing make this body a home.”

Lydia Violet

Se eram necessárias? Não as romantizo, há tantas formas de chegar à consciência e claro que não podem nem devem passar todas pela dor, tão pouco a podem excluir completamente.

Íris Garcia

Íris Garcia

Colunista e Autora regular da Revista

Sou a Íris. Sou Mãe, Terapeuta e Educadora Psico-Somática, Formadora de Fertilidade Consciente, Yoga Terapeuta, Doula, Mulher Medicina, Herbalista, Artista de Dança, Autora, Investigadora e ecologista. As minhas linguagens primeiras são a Natureza, a escrita e o movimento. Caminho, danço e escrevo desde que me recordo. O que me move é a vontade de cultivar equilíbrio sistémico a partir do respeito pela Natureza intrínseca de cada pessoa e sua experiência íntima e única,  em inter-conexão com as suas relações humanas e naturais, desde o lugar do corpo em proximidade orgânica com a Terra Viva.

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