O Canto do Verbo

Coluna de Ana Alpande

1 MIN DE LEITURA | Revista 42

Reclamemos a velha

 

Reclamemos a velha

o direito a ter peles enrugadas como as cascas dos carvalhos

corpos ondulados tal como as cordilheiras

côncavos/convexos – radicais inconsistências…

 

deixemos o vento e o luar

pratearem os  cabelos

substrato das longas memórias,

fios

fluxo

informação

tecido conectivo.

 

Reclamemos a velha

aspiremos ser suspiro leve e penetrante

pisar a terra com a leveza dos nossos corpos desmineralizados

espalhando o cálcio e o magnésio pelos poros do chão que pisamos,

devolvendo ao solo o que é do solo: lentamente, passa a passo, balanço de anca, a balança de anca.

 

Reclamemos a velha

saibamos ser velhas sabendo que quanto mais velha

inevitavelmente mais nova – não há como escapar da criança que somos.

 

Reclamemos a velha

não deixemos que nos obriguem a ser o que um velho tem que ser

sejamos rebeldes e insubmissas, afinal

se não aproveitarmos a velhice para mandar

umas quantas pessoas à merda, quando o faremos?

 

Reclamemos a velha,

possamos sacudir a sabedoria dos ombros e darmo-nos ao direito a não saber,

nem levar nada disto demasiado a sério.

 

Reclamemos a velha,

possamos honrar a sabedoria que nos atravessa e permeia,

não como algo nosso,

mas fluxo

neste animal poroso que somos,

 

sejamos essa sabedoria ancestral em movimento.

 

Reclamemos a velha,

reclamando uma estética da decomposição que abrace a velhice

como amor e generosidade supremos,

generosamente libertando matéria densa

devolvendo ao  chão comum o que  afinal pertence a tudo e todos.

 

Afinal

a vida,

todos nós

o nós

toda a vida,

 

em cada célula, ao mesmo tempo

no mesmo lugar

uma  velha, uma donzela e uma criança.

Reclamemos a velha,

possamos sacudir a sabedoria dos ombros e darmo-nos ao direito a não saber,

nem levar nada disto demasiado a sério.

Ana Alpande

Ana Alpande

Colunista e Autora regular da Revista

Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias

A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.

Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.

O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.

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