Onde mora o coração, histórias e paisagens

Coluna de Ana Sevinate

2 MIN DE LEITURA | Revista 42

O Destino da Raiz

 

Quando, depois de tantas lutas travadas e de outras tantas por perder, por fim, nos permitimos ao vazio, a raiz ganha espaço. Quando nos doamos ao nada e abandonamos, por um instante, a intransigência da insatisfação e a dentada da perfeição, a raiz começa a poder sonhar. No horizonte da memória dorme o destino da raiz.

Recorda-se que pode ser quem quiser desde que seja quem sempre sonhou ser. Recorda-se que pode ser quem quiser desde que o seu seja também o sonho da terra.

Espreguiça-se devagar em movimento subterrâneo, de cima para baixo e do centro até ao redor. A raiz sabe bem que a força da sua criação está no silêncio das coisas bonitas e na escuridão das coisas incertas. Chorou o que nunca foi e conhece bem a importância da desilusão. A raiz sabe perfeitamente que a seiva da vida corre quando já não existe o esquecimento. Reclama, protesta e ocupa. Desilude, transgride e pertence.

O ritual e a passagem fazem-se no desconforto do amanhã e a segurança só é ganha na possibilidade de defender o seu lugar, o da raiz. Não é bem-comportada nem aprumada. Não se desconcerta nem se embaraça, mas despenteia-se e suja-se. Porque existe, na própria memória do pó da terra, a história que é sua. E é aqui que mora em cada um de nós o paradoxo mais belo e o mais desconcertante. Pois o lugar que é o nosso e bravio só pode ser revindicado se estivermos dispostos a perder o chão que nos é familiar.

Encostamos o ouvido ao chão da terra e podemos ouvi-la. À raiz. Ao expandir-se na possibilidade da bifurcação e da escolha. Em direção ao encontro da raiz vizinha. Não pede desculpa, cumprimenta e respeita. Dignifica-se na decisão de existir.

Ergue-se na liberdade de arriscar desenraizar-se para permanecer no seu lugar. E também nós podemos perder o chão sem perder o lugar. Se seguirmos o caminho da raiz.

São tempos de sermos raiz. São tempos de ficar. De ganhar folhas nos braços e flores no peito. De assumir o lugar no ecossistema, pois há também uma singularidade a defender, aquela pela qual a biodiversidade tanto nos implora. Firmamos os pés no chão, levantamos as mãos, franzimos o rosto e proclamamos a toda a rosa dos ventos. Como uma árvore que se estica no abrigo dos primeiros rebentos que brotam e dos últimos piscos que migram.

São tempos de sermos raiz. São tempos de nos atiramos ao alto do céu e ao mistério das rochas. Pois todos os sistemas que nos exigem osmose e aglomeração, cortam pela raiz o seu próprio destino. Pois é o vazio e o intervalo entre nós que nos esculpe.

É o momento suspenso antes do gesto que nos prepara. Para o destino da raiz.

Encostamos o coração ao chão e podemos escutar o tremor da terra. São pés e patas e asas a bater, são raízes a aprofundar, são histórias que se atrevem a soltar. Para correrem atrás do primeiro sopro e do último suspiro. Porque é a eles, ao primeiro sopro e ao último suspiro, que pertencem. As histórias e as raízes. E no silêncio e no vazio que se seguem, nascemos, sonhamos e morremos mais um bocadinho.

Firmamos os pés no chão, levantamos as mãos, franzimos o rosto e proclamamos a toda a rosa dos ventos. Como uma árvore que se estica no abrigo dos primeiros rebentos que brotam e dos últimos piscos que migram.

Ana Sevinate

Ana Sevinate

Psicóloga clínica e psicoterapeuta

Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida. 

Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.

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