Mitologia Criativa

Coluna de Élia Gonçalves

3 MIN DE LEITURA | Revista 42

As mãos e o fio

– os Mitos do Tempo e do Destino –

 

“Às mulheres não foi dado durante séculos escrever. Elas traçavam sinais de criação usando linhas enfiadas em finos orifícios, em teares, manipulando pequenos instrumentos de fabricação caseira. Com isso, transfiguravam o mundo, escrevendo signos que substituíam as palavras.”

Leila Almeida

Penélope, A Bela Adormecida, Allerleirauh, Ariadne, Aracna, a sétima irmã de Os 6 Cisnes, entre tantas outras, são heroínas de contos de fadas ou mitos que trazem em comum o fio, o fuso, o tear ou a arte de fiar e tecer.  A cada uma cabe uma tarefa épica, seja ela criar tempo aparentemente inexistente, cumprir uma maldição, criar o seu próprio destino, guiar o caminho de outros, salvar os irmãos de um feitiço ou desvendar perante todos as desventuras dos deuses.  E devido a cada uma, as linhas do mundo movimentam-se e uma nova mitologia acontece.

Na Deusa estão atribuídos o fuso e o tear como objetos sagrados, sendo ela a Grande Fiandeira, a Senhora do Tempo que sustenta a ciclicidade, a vida nas suas grandes mudanças, fiando e tecendo o destino do mundo.

Nas grandes estórias, que são as nossas, encontramos nas mãos, no fio, e no feminino que o trabalha, os sonhos que sustentam a vida.

O enxoval de um bebé que vai nascer, uma bela colcha para uma noite de núpcias, uma rede de pesca na qual se colocam aspirações de sucesso ou um casaco coçado com pequenos feitiços de proteção. Fios e nós que nos ancoram e cuidam nos ritos, nas medicinas, nos amuletos. Uma tapeçaria antiga, que nos toca não só pela beleza e rigor de cada pormenor, mas pelos arquétipos que evoca, pelas estórias que narra, pelos tempos de que só a nossa alma se recorda. O fio, e as mãos que o trabalham, aconchegam, vestem, protegem e contam estórias desde que as estórias pedem para ser contadas.

O fio tece e narra, ancora e cria, trazendo em simultâneo presença e transe, num processo em que as mãos são as contentoras da imaginação, da criatividade, da intuição e da criação e, ao mesmo tempo, as humildes fazedoras deste processo intrincado que nos pede tempo e entrega.

Talvez seja esse o grande ensinamento dos fios, a experiência do Tempo e do Labor, em processos nos quais a criação não é imediata e é concebida na medida em que as mãos tecem e desmancham, aperfeiçoam e materializam. Os mitos do Destino e do Tempo estão inequivocamente ligados e ao perdermos um, talvez seja inevitável que nos esqueçamos do outro.

Ainda que os fios não sejam o lugar onde as nossas mãos laboram e descansam, onde estão as tramas nas quais tecemos dias que não sejam todos iguais? Onde os cheiros e os contornos e os jogos de luzes e sombras nos vestem de candura e inocência? Onde encontramos nós espaços em que o tempo é um aliado e não um inimigo que nos foge por entre os dedos e nos impele a correr pela vida, sem lugares para aconchegar, proteger e contar as nossas estórias? Onde habitam os nossos templos de presença e transe, criatividade, intuição, humildade e criação? Quanto tempo damos ao tempo?

Pois sem tempo, foge-nos o destino como um vento que passa, e a vida transforma-se em aridez. Um lugar imenso por onde corremos sem que possamos aproveitar as paisagens e os sentires, as maresias e a frescura do bosque.

Tudo o que vale a pena tece-se no tempo.

É preciso tempo para aprender a amar. Para rir das próprias desventuras. Para chorar e contemplar. Para dar voz a expetativas e anseios. Para fazer as perguntas que importam e aprender que há perguntas que deixam de ser necessárias.

Para observar e aprender que tudo muda, mas que também regressa. Que a impermanência traz desassossego e o desassossego pede criação. Que, em algum momento da vida, criamos tempo inexistente, cumprimos maldições, guiamos caminhos, salvamos irmãos de um feitiço, narramos estórias alheias ou criamos o destino. E as grandes estórias, as nossas de cada dia, pedem-nos tempo.

Para ser vividas, sentidas, contempladas e narradas, sejam tecidas pelos fios, pela voz ou pela imaginação. Para serem aconchegadas, protegidas e entrelaçadas em sonhos e experiência. E criarem mitologias que um dia poderão ser tapeçarias contempladas por outros, ressoando-lhes às células e sussurrando-lhes na alma.

Os mitos do Destino e do Tempo estão inequivocamente ligados e ao perdermos um, talvez seja inevitável que nos esqueçamos do outro.

Élia Gonçalves

Élia Gonçalves

Colunista e Autora regular da Revista

Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal

Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa
Autora do Mito de Ophídia

elia.gonçalves@escolatranspessoal.com