artigo de maria trincão maia

Janelas

3 MIN DE LEITURA | Revista 40

As janelas da minha casa são de madeira, vidro simples e velhas. Um atentado ao conforto humano segundo a visão da grande maioria. As janelas de minha casa têm ferragens velhas, carmonas, ferrolhos, fechos perros e defeitos. Não tem um tamanho standard, não abrem a meio, não são fáceis de limpar, não isolam bem. As janelas da minha casa são, no seu formato de janela, tão velhas como a casa, celebram 73 anos. Sabem da minha história melhor que eu. Espectadoras discretas dos enredos do quotidiano, namoros de janela, observadores atentas  de quem chega, de quem parte, escudo para o famoso (não) medo de trovoadas do meu avô, pontes para o exterior dos meses de resguardo da minha mãe e a sua asma. Depositárias do todos os nossos olhares vagos para o infinito, quase sempre perdidos dentro da sua moldura. 

As janelas de minha casa não são só minhas ou de quem habita a casa, não só dos animais, dos pássaros que lhes posam, das moscas, abelhas, ou do caruncho que não entra. São maiores que tudo isso.

São maiores do que a vida humana ou a utilidade, são super heroínas de uma história. Nelas estão concentradas o conhecimento ancestral de quem viu e viveu o mundo, nelas há para além daquilo que o entendimento humano consegue alcançar. Não é poética, não é metáfora, é compreensão.

A sua estrutura é de madeira – madeira de Sucupira. Sucupira é uma árvore nativa do Brasil, principalmente da região do Cerrado e Caatinga. Neste momento é uma árvore que está  inserida na lista de plantas ameaçadas do estado de São Paulo. É uma árvore resiliente e pouco exigente, mantém-se com solos fracos, e por isso é indicada para reflorestamento. Podem crescer até 15m e são de folhas caducas. Tem aplicações medicinais, o seu óleo ou folhas (em chá) ajudam no combate a inflamação, reumatismo e diabetes, pelo menos é o que afirma o saber popular. 

Atingem o tamanho ideal para corte entre os 30 e 40 anos. Porém, as janelas de minha casa podem ter sido feitas de árvores muito mais velhas, pois a sua antiguidade remete a um tempo de pouco cuidado com as árvores por parte do comércio sagaz do ocidente. Do pouco que sei sobre a Sucupira, consigo compreender a sua importância, trazida do outro lado do mundo, veio parar a uma pequena aldeia junto ao rio. Cortada do seu habitat, pergunto quantas histórias já trazia esta madeira? O que ela observou, o que ela viveu, de onde vieram os seus nutrientes? O que passou a sua semente para ser árvore? Quem debaixo dela se aninhou, recostou? Quem a cortou e quem a transportou? Que histórias contam as mãos que a mataram? Como foi transformada, transportada? Quantas vidas a tocou antes de chegar a Portugal? A quantas mortes assistiu? Quantas vidas viu nascer? Que árvores são estas que habitam a minha casa há mais tempo do que eu? Que sabedoria trazem e deixam, todos os dias? 

É fácil esquecer que o vidro é feito de areia, é mais fácil ainda esquecer a origem da areia. A areia forma-se por erosão, são sedimentos que outrora foram rochas, às vezes conchas; são testemunhos de milhões de anos, fundidos numa claridade que nos permite ver e proteger. É um material tão versátil e mágico que podemos perder horas sem fim nele. O vidro é como um escudo delicado que não nega o mundo exterior, mas que cria o nosso mundo interior. É difícil conceber os anos que um simples vidro pode ter na realidade, mergulhar na profundidade da sua existência pode facilmente remeter-nos ao tempo em que não havia humanos a habitar a terra.

Se por um lado a areia vem à crosta da terra, a profundidade do metal, a compreensão da sua existência remete-nos para as entranhas vulcânicas da terra, do calor e do que nunca os nossos olhos podem ver. O habitar o interior da terra como nenhum ser ou não ser possa fazer. E depois de forjado vira os ferrolhos, os fechos perros, a alma metálica da janela.

Não são apenas janelas, são as minhas janelas. Durante muito tempo achei que o melhor era trocá-las, as vozes de discórdia gritavam que a casa era demasiado desconfortável, demasiado fria, demasiado datada. Com o tempo, percebi que manter estas janelas era um acto de humildade perante a grandiosidade daquilo que as compõem, do que são feitas, como foram feitas, quantas vidas humanas e não humanas tocaram. Estas janelas são maiores do que a vida que eu tenho, são maiores do que o seu próprio e invulgar tamanho, e até da sua utilidade. 

Existe o lugar onde nos colocamos a observar o que nos rodeia, se nos pusermos no centro (human centered) as janelas irão ser trocadas. Podemos falar em materiais sustentáveis, podemos falar em baixo impacto de carbono, vamos buscar as janelas mais próximas que existem, comércio justo até slow design.

Mas serão trocadas!

Porém… se nos colocarmos noutro local, entre margens, percebemo-nos como componentes de um local entre todos os outros componentes. Percebemo-nos como guardiões de locais e não como donos. Assim percebemos, por fim, que as janelas não devem ser trocadas, não podem ser trocadas, porém podem ser atualizadas, melhoradas, respeitadas.

O que é aparentemente simples, é na realidade um intricado sistema de relações que procura ser não hierárquico.

As janelas de minha casa não são só minhas ou de quem habita a casa, não só dos animais, dos pássaros que lhes posam, das moscas, abelhas, ou do caruncho que não entra.

São maiores que tudo isso.

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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