Onde mora o coração, histórias e paisagens
Coluna de Ana Sevinate3 MIN DE LEITURA | Revista 40
guardadores de chamas
– pelo País de Gales –
Cada um de nós guarda uma chama. A vida oferece-a na escolha de nos suster. Em troca, oferecemos o lugar de a guardar. E guardada nessa chama vive uma história, primeira e singular. Guardadores dela somos. E na devoção que devemos à vida, é esta a missão maior, a nossa, a de zelar por ela. Ao serviço, guardadores atentos de um templo. Como vestais. Preservando a chama viva e a história a revelar. Afastando tudo aquilo que impeça ou dificulte que a chama crepite na sombra e na noite. Recusando tudo aquilo que impeça ou dificulte que a história tome o seu lugar no círculo do tempo. Para que o fogo da lamparina não se extinga e para que lembremos o caminho para casa.
E é na paisagem da alma e é no coração da paisagem onde me encontro. Templos. A sua ondulação é como um cabelo imensamente comprido, decorado com musgos e entrançado por lãs e bagas. Macia, cobre-nos como um manto, cumprindo a promessa de podermos levar connosco o seu afago. As árvores saúdam os peregrinos e brincam, atirando bênçãos a quem as quiser agarrar. A ondulação da água canta lendas numa língua tão antiga que só o corpo sabe escutar. Ovelhas no campo, carneirinhos no mar.
É o caminho de voltar. Pois o chão está na viagem e na dissolução do que, aparentemente, segura. E a peregrinação faz-se nos lugares remotos do coração e do prado. O lugar de voltar faz-se no lugar de recolher. De recolher ao lugar de dentro, da alma e da paisagem, onde se resignificam as coisas e as histórias. De recolher o que fomos deixando cair, bagas e bênçãos. E é aqui que mora a liberdade. Na alma, na paisagem e no inconformismo dos sentidos. Porque se toda a nossa experiência puder ganhar um novo significado, a escolha, a nossa, entrega-se livre. Colhe-se a história que o ar frio soprou.
O vento chega do norte para soltar as tranças, levando para longe os segredos. Portas sem porta são passagem para lá do tempo que funde, em arco, passado, presente e futuro. As lápides do campanário repousam à sombra do teixo, que as protege com o seu silêncio. Agulhas que indicam a direção e que nos recordam a sacralidade da vida. Bolinhas vermelhas, cor de chama, que recordam a permanência do espírito. Sempre verde. O tronco oferece-se às mãos do carpinteiro amoroso que entende e respeita o tempo de morrer. Dele nascem arcos e flechas, apontando o significado da chama e o propósito da vida. Madeira anciã que entende e respeita o tempo de renascer. Às mãos do carpinteiro. Ambos, o teixo e o carpinteiro, transcendem o significado. Ambos, ao serviço. Reescrevem, suavizando o toque e o olhar. Porque se toda a nossa experiência puder ganhar um significado e um sentido maiores, a escolha, a nossa, entrega-se livre e ao serviço. Esculpe-se a história que o corpo lavrou.
Os castelos lembram-nos da fortaleza que é o corpo. O corpo que sabe observar. Pelos espaços entre pedras e onde o horizonte se alcança. O corpo que sabe defender. Pelas paredes que se erguem não deixando passar. O corpo que sabe não se deixar arrastar. Pelas raízes que se firmam para poderem ficar. Túneis que são corrente sanguínea. Levando, trazendo. Portas com porta que são poros. Fechando, abrindo. Já a céu aberto, pois já é possível respirar. E ir e voltar.
E damos nome. E ao darmos o nome, damos corpo e é primordial à vida dar corpo ao sentido e ao significado. E é aí que mora a liberdade. Muito para além da abstração. Muito para além da beira do caminho e da beira-mar, no corpo da terra e no nome do mar. E damos gesto. E ao darmos o gesto, o corpo segue livre. E a viagem segue para além da estrada. Trazemos connosco, a viagem e o afago da ondulação. Vão as pedras rolando e os falcões planando e o cinzel orientando. Todos eles guardam a sua chama e a nossa verdade. Todos eles indicam a estrada e o significado a entender. Todos eles anunciam o nome e o gesto a atribuir.
E é então que o medo se retrai. Intimidado por todos aqueles que já seguram a chama, o cajado e o capote. Seguimos, de lamparinas acesas. Não seguimos em rebanho, mas em peregrinação. Cobertos pelo seu manto.
O corpo que sabe defender. Pelas paredes que se erguem não deixando passar. O corpo que sabe não se deixar arrastar. Pelas raízes que se firmam para poderem ficar. Túneis que são corrente sanguínea. Levando, trazendo. Portas com porta que são poros.
Ana Sevinate
Psicóloga clínica e psicoterapeuta
Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida.
Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.
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