Biografia dos dias sem princípio

Coluna de Inês peceguina

6  MIN DE LEITURA | Revista 40

En-fim, a porta do dentro.

Não tenho a natureza do balanço existencial.

Os meus desejos para o final do ano não chegam para as 12 uvas passas. Nem para metade. Não resultam de um ponto-de-situação devidamente organizado, como os artigos que submeto para as revistas científicas. Não têm estrutura óbvia, nem sequencial. Não têm método. Na verdade, não sou particularmente encantada pelo final do ano.

Prefiro os re-começos diários. Que amanhecem, a cada 24 horas.

Talvez porque me parece que, no geral, grande parte do que acontece nas nossas vidas, nestas distâncias anuais, se reconfigura de forma quase sempre imprevista. E que é exatamente essa imprevisibilidade que, se acolhida, como normal, pode tornar interessante o caminho, e as múltiplas direções que não sabemos antecipar. Esta percepção não é nova, para mim, nem pandemia-driven (i.e., determinada pelos eventos da pandemia), mas creio que se aguçou como resultado destes tempos, sim.

Como se se tivesse aberto uma porta que ali esteve deste o início.

A porta do dentro. En-fim!

“Alguém tem um grande fogo na sua alma… e aqueles que passam por ele vêem apenas um pequeno fumo, no topo da chaminé”

Someone has a great fire in his souland passers-by see nothing but a little smoke at the top of the chimney.

Van Gogh, 2014

Por se tratar de um problema global (a pandemia), e por ter conduzido a uma série de eventos estranhos à normalidade, foi como se os fumos de todas as chaminés, de todas as pessoas, se tivessem adensado ao mesmo tempo, formando uma cortina negra, impossibilitando a negação da consciência desse fogo. O fogo de cada um.

A faca não corta o fogo.

Herberto Hélder, 2014

 

A manifestação de uma vida mental fragilizada, pouco madura, e muito, muito silenciada e solitária, irrompeu como um vulcão.

E ainda não parou.

Será suposto que pare, algum dia?

A quantidade de pessoas que diariamente pedem ajuda por causa do sofrimento mental, é enorme, da infância à adultez mais tardia. Os sintomas mais são referidos são o isolamento, a tristeza, a ansiedade, e a irritação. Muuuuuita irritação. Como se tudo o que é negativo, e que não é negativo em si, a não ser pelo contraste com o positivo, tivesse sido comprimido e contido num botão. Um pequenos botão vermelho. Uma borbulha acesa que dói só ao sopro. Sopro leve. Dói.

Do meu ponto de vista, não se trata apenas de uma consequência da pandemia, não de forma direta, mas de uma possibilidade, que poderá estar relacionada com a obrigação da mudança de hábitos de forma abrupta, e sobretudo, porque um desses hábitos tem raízes profundas na nossa essência de mamíferos, que é essa coisa da proximidade, da pele, do abraço, da mão que segura a outra mão.

Abriu-se a cortina. E lá atrás (aqui atrás), estão as marcas óbvias e acumuladas de uma existência que no seu viver acelerado e obcecado pela produtividade, a utilidade, o funcionalismo (se não tem uma função e resultado evidente e imediato, não serve para nada) no seu viver ligeiro e para fora, na opressão de uma alegria imposta (vai ficar tudo bem), nega a morte, o sofrimento, a dor, a agonia e angústia das experiências que todos temos em determinados momentos das nossas vidas.

Esse viver já lá estava antes, claro… Tem sido o tempo, o andamento, o batimento.

E não percebo. No limite, não compreendo porque erguemos este fingimento. Se é é de todos. Se no fundo de cada chaminé, todos temos uma fogueira. Que está sempre acesa, com maior ou menor intensidade. Mas sempre viva, porque a sua extinção total é a extinção absolta da existência. É a morte, literal.

É interessante pensar que uma sociedade que se percebe evoluída em tanto aspectos (sob uma certa ideia de evolução), permaneça numa qualidade interna que pouco se alterou. Naturalmente que podemos encontrar bons argumentos para este estado da arte, tanto na filosofia, como na economia, como na política, e na psicologia também, só para referir algumas disciplinas.

Somos Reis que caminham(os) nus.

Não acredito na correção. Porque não acredito que muitas das situações de sofrimento mental sejam anomalias que precisem de ser corrigidas. Aproximo-me do pensamento de que grande parte das desordens mentais são mais funcionais do que patológicas na sua natureza (ver, por exemplo, Nesse & Williams, 1996, ou Schroder, et al., 2022). Como uma febre. Não são o problema, são um sintoma de problema, um alerta-vermelho para a inevitabilidade de uma mudança. Tal como na febre, se toda a resposta se reduzir ao anti-pirético a origem da infeção, da inflamação, vais estender-se corpo adentro terminando, porventura, no seu colapso.

Também a doença mental parece assumir muitas vezes essa matriz. E se a resposta passar apenas pelo “anti-pirético”, neste caso, da tristeza, da melancolia, da depressão, das obsessões, e de outras desordens, corre-se o risco do colapso. Implosão e explosão. Que não há finais limpos para estas histórias.

Reconhecer a dificuldade é um primeiro passo. Compreender que pode ter múltiplas origens e que existe alguma possibilidade de encontrar um novo equilíbrio, é outro passo. O apoio técnico pode ser outro passo ainda, para conhecer e ensaiar ferramentas, para identificar e talvez abandonar as respostas por defeito, que foram necessárias em certas circunstâncias (esta é a ideia base da desordem mental enquanto adaptação, e que pode ser encontrada tanto no pensamento de Freud, 1990, como em Schopenhauer, 1966).

Penso que possa ser interessante este pensamento, não apenas porque presume uma ideia de normalidade das experiências e situações extremamente difíceis que, em maior ou menor número, fazem parte da história de cada um, mas também porque não tem o seu núcleo na purga, no desvio, na premissa de que o caminho a seguir, depois, está livre de perigos, livre de agressividade, de irritação, de más-decisões, de erro. Vamos continuar a falhar. Mas talvez possamos falhar melhor, nas palavras do famoso dramaturgo Samuel Beckett (1983).

Talvez seja preciso que nos observemos com menos rigor, que deixemos entrar uma certa quantidade de parvoíce, subvertendo a tirania da alegria permanente e do pensamento positivo. Uma convivência mais leve e aberta à falha. Uma disponibilidade sincera para avançar com genuína incerteza. Que nos possamos perder, uma e outra vez, convidando a direções inesperadas. Afinal, luz e sombra só existem na presença simultânea. E ao mesmo tempo que, inevitavelmente, seguimos uma espécie de guião, reconhecemos a sua qualidade de utopia, diminuímos o peso cáustico da insuficiência. Porque é quase certo no que final do próximo ano, nenhuma pessoa tenha concretizado os 12 desejos. E é quase certo que, mais uma vez, embriagados pela sociedade que nos educa desde cedo que tudo é possível e que somos todos capazes de sermos brilhantes, voltemos a ver apenas o pequeno fumo, para depois, a cada momento que se segue, nos dispormos a uma combustão interna, lenta e dolorosa.

En-fim. Há coisas que nunca desaparecem. São proteiformes, o que quer dizer que assumem muitas forma. A evolução da humanidade, do ponto de vista do bem estar mental, não pressupõe a extinção do difícil. Os tempos que vivemos (pós-modernos?) definem-se pela aversão às emoções ditas negativas. A aversão à agressividade, à violência, à tristeza, à zanga, à diferença que gera abismo. Mas permanece. Passou de visível para invisível. De direta para mediada, de real para virtual (que também é real), de física para psíquica, retirando, segundo Han (2013), espaços subcutâneos, subcomunicacionais, capilares e neuronais, dando a impressão de ter desaparecido, ou poder desaparecer. O mesmo autor propõe também que é igualmente violência o excesso de positividade (e não apenas o de negatividade), a massificação do positivo, como sobrecapacidade, sobreprodução, sobrecomunicação, hiperatenção e hiperactividade. Esta violência parece ser muito mais prejudicial, para a saúde mental, do que a violência da negatividade (a violência expressiva, do sacrifício, do corpo, do sangue, que é imposta através da repressão externa), porque está desprovida de visibilidade. Uma deslocação para o interior. E nesta viagem migratória, cada um de nós, nos seus lugares tão desprovidos de identidade, de raízes, de rede social efectiva, imersos na lógica do indivíduo e da capacidade individual, não só perde a noção do outro, das outras chaminés fumegantes, como da sua própria chaminé.

Prefiro os ciclos pequenos. Os dias que amanhecem. Que se possam repetir e surpreender (nos).

 “…gostemos ou não, finalmente chega o fim da geada, e uma bela manhã o vento mudou e temos um degelo.”

 

 

But whether we like it or not,

an end finally comes to the hard frost,

and one fine morning the wind has turned and we have a thaw

Van Gogh, 2014

 

 

Referências bibliográficas

Beckett, S. (1983). Worstward Ho. Grove Press.

Freud, S. (1990). Inhibitions, symptoms and anxiety. W. W. Norton & Company.

Han, B-C. (2013). Topologia da violência. Relógio D’Água.

Hélder, H. (2014). A faca não corta o fogo. Poemário.

Nesse, R. M. & Williams, G. C. (1996). Why we get sick: The new science of darwinian medicine. Vintage.

Schopenhauer, A. (1966). The world as will and representation. Dover Publications

Schroder, H. S., Devendorf, A., & Zikmund-Fisher, B. J. (2022). Framing depression as a functional signal, not a disease: Rationale and initial evidence. OSFPriprints. Retrived from https://osf.io/2pbzt/

Van Gogh, V. (2014). Ever Yours: The Essential Letters. Yale University Press.

Abriu-se a cortina. E lá atrás (aqui atrás), estão as marcas óbvias e acumuladas de uma existência que no seu viver acelerado e obcecado pela produtividade, a utilidade, o funcionalismo (se não tem uma função e resultado evidente e imediato, não serve para nada) no seu viver ligeiro e para fora, na opressão de uma alegria imposta (vai ficar tudo bem), nega a morte, o sofrimento, a dor, a agonia e angústia das experiências que todos temos em determinados momentos das nossas vidas.

Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.