Mitologia Criativa
Coluna de Élia Gonçalves3 MIN DE LEITURA | Revista 40
A canção antiga
– uma estória de solstício –
Conhecia aquele lugar desde que se recordava. Ou seria ele que a conhecia? Por vezes acreditava que sim, que seria ela a fazer parte da imensidão, daquele universo onde aparentemente não habitava, mas que se lhe abria em pequenos sentires, como tímidos raios de luar numa noite nublada.
Na infância, fora inteiramente natural deparar-se com a vida que surgia nas entrelinhas. As tempestades, os sussurros do mar, os grãos de areia que se entranhavam por entre os dedos, os cactos que lhe traziam memórias sem imagem, só sensações intemporais e longínquas. Tudo era tão vivo quanto ela, cheio de estórias e sentires e lugares secretos e antigos. E havia também aquele espaço que surgia quando o sol se punha. Uma vibração tão cheia que a enchia de temor e respeito. Toques cheios de uma sensualidade escura que abraça, que a deixava atemorizada, mas, de alguma forma, viva, como se também ela pudesse ser feita dessa mesma sensualidade, dessa mesma escuridão-abraço.
O tempo quebrou as entrelinhas do mundo deixando no seu lugar um espaço e outro. Um espaço de horários, tarefas, razões e objetivos e um outro lugar, ténue, invisível, misterioso e secreto.
O universo imenso, complexo, cheios de tramas tecidos em sussurros, chuvadas e faz-de-contas escondeu-se num cofre bonito, fechado e repleto de gravuras, que se abria nos intervalos da vida espectável. O mar que a recebia de braços abertos, sorvendo as lágrimas e os anseios e devolvendo o indomável, cerrou-se num espaço esterilizado e belo, expressando-se apenas nos dias em que o arrumado não servia. A penumbra e os lugares recônditos do mundo, as cavernas, o submerso e o subterrâneo, transformaram-se em zonas desconhecidas, de medos inexplicáveis e livros bafientos e empoeirados.
A magia sorvia-se a pequenos tragos, por entre livros, regras e agendas ocultas do mundo, esquecidas logo que se voltavam a trancar. Dançava-lhe nos sonhos, nas festividades e nos rituais, mas não tinha espaço no mundo, na vida onde se tinha obrigado a encaixar.
Percebia, ao longo dos anos em que caminhou dividida, que a vida não lhe chegava desta forma. Não havia espaço para canções murmuradas, tanto quanto não existia lugar para a sua alma desaustinada.
Foi na floresta que escutou a canção antiga. Não de início, quando o caminho era estranho e só lhe servia de amparo para os passos. Não quando passava, uma e outra vez, sem buscar mais do que um toque de estética, de luminosidade ou cor por entre os trilhos. Não, a canção veio quando ela se silenciou. Ao caminhar devagar e deixar a vida expandir-se para além de si mesma. Quando o caminho se tornou mais do que um percurso e nos seus passos sentiu o beijo da terra nos pés. Quando a floresta a envolveu como um manto de folhas escuras e aveludadas, um toque frio e encoberto, que lhe despertou a escuridão-abraço de outros tempos. Tanto temor, tanto encantamento, tanta saudade de um universo-tempo que se voltou a abrir nesses sentires sussurrados, espaçados, numa lamúria antiga e sem palavras, um clamor de luto e vitória, morte, nascimento, crescimento e transmutação. Era uma canção que abria fendas na alma e evocava trilhos antigos, perdas e sorrisos, passagens de tempo e memória e uma nostalgia tão antiga quanto a própria existência. Saudade de algo que não se conhecia, mas se ansiava. Um respirar ancestral, como o bater do coração da própria terra.
Seguiu os pequenos riachos, esguios e sinuosos, por entre os troncos e pedrinhas do caminho. Aquele som seguia um percurso, deixando uma canção para quem escutasse, matando a sede dos que traziam a alma ressequida. Comoveu-se com a água, como se a chamasse de volta para casa.
Sentou-se nas pedras, grandes, gastas, antigas e intemporais e deixou que as mãos percorressem a aspereza da superfície rugosa e húmida e a ferissem com as suas arestas pontiagudas, sem se importar com a dor ou com o sangue. Foram as estórias que a rasgaram por dentro, como se o toque da rocha lhe contasse sobre o início do mundo, os lugares sagrados, os povos que dançavam perante o sagrado e se rejubilavam com a vida e lutavam arduamente com os dias, por entre a fome e a abundância, a luz e a escuridão, a vida e a morte. Como se o sangue nas suas mãos tocasse o sangue e a seiva dos que amavam profundamente o ciclos, a lua e o sol. O toque do inverno e o silêncio que antecede a alvorada.
Finalmente, deitou-se na terra fria e húmida, sentindo novamente o manto, agora seco e velho, lamacento e desfeito. Ainda assim, cama perfeita para um corpo semente. Sentiu-se como o tempo. Fria, quieta e escura. Entregue à vida, numa descida suave e profunda aos confins de si mesma. Silenciosa e fria, sem nada mais do que fogueira intensa que a canção antiga despertara no seu coração. Mulher-árvore, mulher-pedra, mulher-chão, aquietando-se e ardendo ao som de uma canção antiga que não mais esqueceria. Morreria ali, se necessário, mas nunca mais seria dividida por entre espaços, nem guardaria os faz-de-conta, os mistérios e a magia numa caixa cerrada, por mais belas que fossem as suas gravuras. Pertencia ao tempo e ao sagrado. Era parte da canção antiga. Por isso, deixou-se ficar.
E no primeiro raio da alvorada, a vida pariu-se de novo. E ela renasceu.
Fria, quieta e escura. Entregue à vida, numa descida suave e profunda aos confins
de si mesma. Silenciosa e fria, sem nada mais do que fogueira intensa que a
canção antiga despertara no seu coração.
Élia Gonçalves
Colunista e Autora regular da Revista
Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal
Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa
Autora do Mito de Ophídia
elia.gonçalves@escolatranspessoal.com