Ciclos da Terra e da Alma

Coluna de IRIS LICAN GARCIA

3 MIN DE LEITURA | Revista 38

Reciprocar

Há uma agitação que se sente no fim do Verão.

Como se já fosse demasiado tempo. De calor, de extremo, de tensão.

A fermentação é um momento de tensão fértil. Quando o calor já não germina mas antes decompõe, com fervor de criar chão como criou outrora flor e fruto.

Numa cultura tão voltada para o Verão eterno, dias de Sol constantes e uma felicidade que se quer inabalável o tempo do fim do Verão traz a exaustão da euforia que nos retorna a uma tão necessária humildade: é premente a necessidade de chuva, de frio, de tempestades, de ventania para o equilíbrio sistémico. Onde a chuva não toca nada retorna à vida, tal como acontece com as lágrimas. Sem elas, nada regenera nos solos outrora fecundos e agora desertos das nossas paisagens internas.

Há uma azáfama no retorno ao lar, no cuidar de trazer o fogo para dentro de casa, preservar alimentos e separar roupas, preparar com discernimento aquilo a que nos dedicaremos este novo ciclo.

Para mim, é no Outono que inicia o ano.

Há um tempo entre o meio do Verão, a noite do Bom Caminho até ao Equinócio que nos fala de adentrar. De encontrar na azáfama a serenidade, a prece e sobretudo a reciprocidade.

Cada dia mais aprendo que reciprocidade é verbo, porque reciprocar se quer acção. 

Repôr mais do que retiramos é uma tarefa fundamental e temos que nos reeducar de forma avassaladora, contundente até, para que a abracemos. 

Cuidar do que cuida de nós é a única lei funcional de sobrevivência.

Não cuidamos as águas que bebemos: secam.

Não cuidamos as árvores que nos permitem respirar: queimam.

Não cuidamos os animais e plantas: não teremos ecossistema, solos férteis e regenerados, redes de água abundante, bio-diversidade. Não teremos alimento nem saúde e com isso sim, não teremos pois qualquer propósito por mais afirmações espeirituais que possamos repetir.

Dei por mim a escolher sementes para o meu pequeno páteo ( que está sempre menos cuidado do que gostaria, não vá alguém querer fazer de mim um exemplo, as minhas mãos também não chegam para tudo o que gostaria ou como gostaria). Escolhi flores para polinizadores: quis poder exercitar esse músculo verbo reciprocar, para dar aos insectos que nos dão alimento embora seam tão pequenos que mal os consideramos mas tão fundamentais que sem eles não há flores nem frutos e cuja família é tão vasta e tão extensivamente ameaçada pelos herbicidas (que nunca são ecológicos, nunca só porque não dá). Não vou colher estas flores nem prepara-las de nenhuma maneira, não as vou cultivar para mim, vou ama-las por elas e semea-las para a teia da vida da qual faço parte. Deixar de ter uma compensação imediata ou visível pelas nossas acções é talvez a única forma de deixarmos de ser consumidores.

Porque o consumidor que não cuida é o mais perigoso e destrutivo predador. Dá-se o direito de usar sem repôr e isso é totalmente contra-natura. Nas comunidades tribais, os caçadores cuidam as crias do animais que caçam e têm directrizes éticas: nunca caçam mais do que o necessário, não caçam crias nem fêmeas, não caçam sempre a mesma espécie e monitorizam o número de animais porque convivem com eles diariamente. Co-habitam o mesmo habitat e não visitam a floresta apenas para matar quando lhe apetece brincar com o poder de matar. Esse poder tem em si a intrínseca responsabilidade de cuidar para que se tenha o direito de tirar a vida. Porque se os animais se extinguem nenhum ser humano sobrevive.

O mesmo com as plantas: os recolectores herbalistas tradicionais nunca colhem mais de um terço a metade da planta, visitam os seus habitats inúmeras vezes, vigiam e estão em relação com a planta e seu bem-estar, entendem a sua função para o solo e animais e não só para si.

Até as plantas das nossas janelas estão ao serviço da Terra como todo de relações sistémicas: nada existe apenas para nós. 

Reciprocar é portanto, a educação mínima de retorno, agradecimento e bom senso não só pelo que a Terra, plantas e animais nos dão mas porque tantos seres humanos ao longo de milénios antes de nós cuidaram para que hoje nos chegasse o alimento, a água, o ar.

Gosto de substituir a palavra consumidor por cuidador e disciplina por dedicação.

Quando me dedico a cuidar sou menos violenta comigo, porque cuidar é uma doação que inclui mas é maior do que a obrigação. Quando cuido em dedicação estou em relação, não consumo porque considero que tudo é tão ou mais importante do que eu na teia da vida da qual faço parte, e que honra poder cuidar de tamanhos tesouros.

Esta é a única noção de propósito que considero real. Porque onde estamos colectiva e individualmente: ou regeneramos ou não é útil. O cuidado é o verdadeiro investimento: cuidado transversal individual, comunitário, humano e além humano. Um cuidado dedicado e amoroso.

Na mitologia egípcia o Deus da sabedoria, Toth, tem um livro secreto que contém toda a conhecimento do universo. Toth está ao serviço de Maat, o equilíbrio absoluto universal. Ninguém ser sem Toth pode ler o livro por uma razão muito simples: porque adquirir conhecimento sem estar ao serviço do equilíbrio absoluto de toda a Vida é perigoso e inconsciente, para além de inútil.

Hoje enquanto escrevo dedico-me pois, mais uma vez e sempre, a não acumular nenhum saber que não sirva o equilíbrio, a regeneração em reverência aos princípios da Vida até aqueles que não compreendo. Porque até o Sol, que é o maior e mais alto dos astros se curva todos os dias para beijar a Terra, acordar as sementes e fazer mover o composto.

Repôr mais do que retiramos é uma tarefa fundamental e temos que nos reeducar de forma avassaladora, contundente até, para que a abracemos.

Íris Garcia

Íris Garcia

Colunista e Autora regular da Revista

Sou a Íris. Sou Mãe, Terapeuta e Educadora Psico-Somática, Formadora de Fertilidade Consciente, Yoga Terapeuta, Doula, Mulher Medicina, Herbalista, Artista de Dança, Autora, Investigadora e ecologista. As minhas linguagens primeiras são a Natureza, a escrita e o movimento. Caminho, danço e escrevo desde que me recordo. O que me move é a vontade de cultivar equilíbrio sistémico a partir do respeito pela Natureza intrínseca de cada pessoa e sua experiência íntima e única,  em inter-conexão com as suas relações humanas e naturais, desde o lugar do corpo em proximidade orgânica com a Terra Viva.

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