O canto do verbo

Coluna de Ana Alpande

3 MIN DE LEITURA | Revista 38

Crónicas Sobre O Pendular Do Tempo E O Afecto Vivo À Matéria Morta

A minha avó descascava as favas com a paciência de quem é intimo do tempo, grão a grão galopava certeiramente a espessa camada verde oliva, mesmo quando esgotava a força da unha do polegar.

Fazia-o por amor: amor aos da casa, amor a si mesma, amor ao próprio tempo e à sua condição de mulher cuja cronologia diária era ditada pelo intervalo entre refeições e a arte de nutrir corpos; os corpos da casa que ora entravam, ora saiam do espaço, enquanto pacientemente contava as ausências pelo som da Ave-Maria que ressoava na caixa de madeira escura,  relógio da sala, a minha primeira introdução à inevitabilidade do pêndulo.

A indumentária da minha avó era sempre a mesma: uma bata de tecido barato comprada na praça e uns manguitos feitos com restos de lençóis velhos  para proteger as mangas dos casacos e camisolas. Acho que os primeiros pontos que dei foram nos meus primeiros manguitos, que recebi de presente aos quatro anos quando já tinha idade suficiente para subir ao banco e ajudar a minha avó a lavar as folhas de alface que o meu avô trazia da horta, ainda a cheirar a terra molhada e a corpos de insetos.

Aprendi com a minha avó a remendar as horas com pontos certeiros e orações simples, quase sempre responsos e ave-marias que preenchiam o espaço livre da cozinha, onde as ondas sonoras fundiam-se com os raios de sol. Todo o universo da minha avó parecia girar ao redor da preparação das quatro refeições do dia, entre horas limpava, remendava e contava histórias com vividez e entusiasmo de criança.

Quando lavávamos as folhas cheias de frescura e delicadas nervuras, ou quando remendávamos os trapos com carinho e atenção parecia que estávamos suspensas no tempo, que tudo o que existia era aquele lugar, naquele momento e todo a amor que os poros de uma jovem pele pode absorver, não como uma prisão ou redução da imaginação de criança, mas como o universo do tempo-não-tempo, um outro lugar da existência por onde as crianças navegam com facilidade e onde os adultos parecem não conseguir entrar. A minha avó entrava e saia com tamanha mestria que às vezes eu não tinha a certeza se ela era verdadeiramente velha ou nova, tão nova quanto eu, tão nova quanto a mais tenra folha da mais jovem alface, apaparicada pela suavidade do sol primaveril e acolhida pelo gentil orvalho.

Tudo naquela cozinha cheirava a refogado, maçã cozinha, gestos familiares e a um compromisso sério em dizer não ao desperdício, fosse ele de substâncias formais, estas que têm forma concreta, fosse da atenção preciosa dada às coisas que crescem, envelhecem e morrem tão devagar que quase que perdemos o a tempo passar, a fiel batida pendular do relógio que anuncia a porção de tempo que acabou de desaparecer para nunca mais voltar. A minha avó era bem ciente da trágica realidade que o tempo não se recupera, por isso vivia devagar com o vagar de quem se dá por inteiro e sabe verdadeiramente apreciar o valor da porção de vida que lhe cabe viver.

Eu nada seria sem ela.
Sem ela seria poeira suspensa num dia de vento e nevoeiro, um espectro medroso, vagueando pelo espaço do por vir a ser. Uma folha perdida da sua casa, do seu chão, levada pelo vento para lugares que nunca poderá alimentar.

A minha avó está em mim como o sangue, as vísceras e os ossos.

Quando morreu, morri com ela e demorei muito tempo a renascer para a realidade de não poder mais escutar a doçura rouca da sua voz ou lavar-lhe os óculos garrafais para lhe ver bem os olhos de saudade. Renasci nós, nunca mais pessoa individual, mas colónia colectiva de afetos, traumas e memórias. Hoje sou tudo o que fomos juntas: riso, beleza, tristeza, saudade, e o amparo de saber pisar o chão por inteiro, não porque quero alguma coisa do chão, mas sim porque sou o seu projecto em constante transformação.

Cada vez menos eu, cada vez mais nós, uma amalgama de tecidos, espectros, fogo, espaço e as águas sagradas da memória. Essa memória que guarda a eternidade.

Embora esteja muito satisfeita com a finitude das coisas, não estou disposta a aceitar o fim do amor, por isso cultivo orgulhosamente a teimosia de não aceitar a morte das coisas como o fim do afeto às coisas.

É só mesmo por causa desta teimosia que afirmo que desde a matéria mais pesada, à partícula mais leve, é o amor, sempre o amor que encadeia a delicada dança da transformação.

Eu só posso aspirar a ser como a cozinha da minha avó, o espaço onde a oração ressoa e os cheiros mornos do afeto constroem paredes de memória para as próximas gerações.

Tudo naquela cozinha cheirava a refogado, maçã cozinha, gestos familiares e a um compromisso sério em dizer não ao desperdício, fosse ele de substâncias formais, estas que têm forma concreta, fosse da atenção preciosa dada às coisas que crescem, envelhecem e morrem tão devagar que quase que perdemos o a tempo passar, a fiel batida pendular do relógio que anuncia a porção de tempo que acabou de desaparecer para nunca mais voltar.

Ana Alpande

Ana Alpande

Colunista e Autora regular da Revista

Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias

A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.

Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.

O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.

anaalpande.com
geral@anaalpande.com