Mitologia Criativa
Coluna de Élia Gonçalves3 MIN DE LEITURA | Revista 36
Transportar o Mistério
– a quarta tarefa de Psique –
Afrodite disse:
“Pareces uma feiticeira, de tão bem que conseguiste cumprir as minhas tarefas. Mas tenho uma coisa mais para fazeres. Desce ao palácio do submundo e pede a Perséfone uma caixa do seu unguento de beleza, pois necessito dele para me apresentar perante os deuses.”
(…) Psique sentiu que era o fim e dirigiu-se a uma torre muito alta para se atirar lá para baixo. Porém, a torre falou desta maneira:
“Deves ir até ao Monte Tenaro, onde encontrarás a porta para o Hades. Não levarás as mãos vazias, mas uma fatia de pão de cevada em cada mão, duas moedas na boca e força para a tarefa. Não darás ajuda a ninguém até chegar. Cuidado com a hospitalidade que aceitas do submundo, pois a este ficarás obrigada.”
(…) Cumprida a tarefa com tamanho esforço, Psique vê a luz do dia e pensa: “Trago o unguento de beleza para Afrodite. Quão néscia seria se não retirasse um pouco, a fim de agradar ao meu formoso Eros?”
Quando assim pensou, abriu a caixa, dentro da qual nada havia, salvo um sono infernal e profundo, o qual destapado, cobriu Psique de uma névoa e todos os seus membros tomou e possuiu. Ela caiu como uma coisa morta.
A quarta e derradeira tarefa de Psique é a mais difícil e, talvez, uma das mais importantes no caminho. Descer ao submundo para obter um caixa com o unguento de beleza de Perséfone. Após três tarefas praticamente impossíveis, em que as ajudas não humanas prestam um serviço imensurável, Psique enfrenta uma demanda na qual, apesar de aconselhada pela torre alta de onde se pensou suicidar, depende exclusivamente dos seus recursos e coragem. Esta parte do mito é repleta de simbolismo e pequenas semi-tarefas a realizar: pagar o preço pela viagem, aprender a dizer não, não intervir na tecelagem do destino e não ficar vinculada à hospitalidade do submundo. A mim encanta-me a caixa de beleza de Perséfone.
As três tarefas anteriores colocam-nos perante situações fundamentais para o amadurecimento. Com a separação das sementes, Psique aprende a arte do discernimento, fundamental para caminhar na vida em consciência e lucidez. A lã dourada dos tosões, apanhada quando os animais dormem, dá à heroína pistas para uma via mais criativa e suave, na qual a energia masculina a utilizar não a consuma e esgote. A terceira tarefa, encher uma taça de água de uma das mais altas fontes do rio Estige, é conseguida com a ajuda de uma águia, cujo olhar observa com maior amplitude as circunstâncias. Psique aprende aqui o segredo de beber a vida em pequenos tragos e na quantidade necessária, mesmo quando esta nos parece avassaladora.
Descer ao submundo para ir buscar uma caixa com um unguento de beleza surge como uma tarefa de caracter não ordinário. Afrodite propusera-lhe somente três tarefas, sendo esta quarta algo excecional que emerge na medida em que as três anteriores foram completadas. Descer às profundezas na busca de beleza, seguindo um trajeto focado e sem distrações e correndo o risco de nos perdermos da própria demanda.
Enquanto as tarefas anteriores são passos essenciais para a maturação na vida adulta, iniciações na arte de viver melhor e usufruirmos de relacionamentos com maior consciência, as descidas voluntárias ao submundo não acontecem a todos, ao contrário da descida involuntária (causada pelas circunstâncias da vida). A descida de Psique caracteriza-se por saber o que necessita de levar e o que pode encontrar no caminho, pistas que não nos são fornecidas quando somos raptados numa descida involuntária.
Esta viagem ao submundo, para além dos desafios e aprendizagens que vão sendo propostos nos pedidos de ajuda (a que não pode aceder), ou das pequenas tentações que recusa, como o convite das três tecedeiras para que espreite os fios do destino ou a hospedagem de Perséfone para se instalar e comer o que quiser, a tarefa parece nada trazer de aprendizagem para a própria Psique. Transportar um unguento de beleza utilizado por Perséfone e levá-lo a Afrodite.
Psique não resiste a espreitar e, em vez de um creme de beleza, encontra um sono de morte que a faz desfalecer.
A história original fala de caixa com um unguento de beleza, mas também de uma “caixa que contém um segredo místico”. O místico, o símbolo, o mistério, são, por si mesmos, elementos de poder. Quando tentamos explicar o símbolo, ele perde a força. Trazer significados fechados a imagens arquetípicas, pertencentes ao mundo imaginal, é retirar-lhes o âmago, o inefável, esse padrão energético, universal, que vibra desde a própria imagem e nos ativa.
Através da sua demanda como fonte de comunicação entre arquétipos (Afrodite e Perséfone), Psique, na sua vulnerável humanidade, acaba por se identificar com estes. Usar o conteúdo da caixa para si mesma e trazer a dimensão do arquétipo à vida mortal.
A identificação com um deus é uma característica humana. E é também devastador e destrutivo para a construção da identidade, consciência e poder pessoal. Naturalmente que somos ativados pelos arquétipos, mediante as circunstâncias da vida. A Mãe surge na maternidade, da mesma forma que a Amante é ativada num momento de paixão. Ativar, ou ser ativado por um arquétipo não é o mesmo que identificarmo-nos com um. Quando ficamos presos na armadilha de permanecer infinitamente no arquétipo ativado, perdemos a capacidade de continuar a crescer, uma vez que a dimensão humana mergulha novamente na inconsciência.
O lugar do Mistério pertence ao Mistério. Talvez por isso ele seja tão irresistível e assustador. Transportá-lo é a demanda humana, para aqueles que lá chegam perto. Não é uma tarefa pequena. Transportar o mistério é ter acesso a ele, sem que nos demos conta. Psique transporta o segredo da beleza de Perséfone, uma vez que desceu ao submundo e regressou. Não precisa de o explicar (nem consegue), ou de o usar para si mesma. É aquela que o carrega, e isso é um Mistério em si.
Terá falhado Psique? Em verdade não, pois ao abrir a caixa de Perséfone e mergulhar num sono profundo, viajou verdadeiramente para a “terra da morte”, o submundo, numa descida involuntária iniciática. É salva por Eros, o Amor, que como elemento masculino (interno ou externo), amadurece também ao longo das tarefas e tem a força suficiente para despertar a Psique (a Alma) para um novo nível de consciência de quem é. E ela torna-se novamente, desta vez pela sua própria experiência, aquela que transporta em si este lugar de Sagrado.
Psique não resiste a espreitar e, em vez de um creme de beleza, encontra um sono de morte que a faz desfalecer.
Élia Gonçalves
Colunista e Autora regular da Revista
Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal
Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa
Autora do Mito de Ophídia
elia.gonçalves@escolatranspessoal.com