Mil-em-Rama

Coluna de maristela barenco

2 MIN DE LEITURA | Revista 36

Se quer a luz, não fuja das sombras!

Gostaria de trazer um conto e uma reflexão. É um conto muito antigo, atribuído a um filósofo chinês, de nome Chuang Tzu, que dada do século II a. C. Chuang Tzu é um dos maiores escritores taoístas da história, esta vertente filosófica mais intuitiva, emocional, ligada à natureza. O conto se chama A Fuga da Sombra[1]

“Havia um homem que ficava tão perturbado ao contemplar sua sombra e tão mal-humorado com as suas próprias pegadas que achou melhor livrar-se de ambas. O método encontrado por ele foi o da fuga, tanto de uma, quanto de outra. Levantou e pôs-se a correr. Mas, sempre que colocava o pé no chão, aparecia outro pé, enquanto a sua sombra o acompanhava, sem a menor dificuldade. Atribuiu o seu erro ao fato de que não estava correndo como devia. Então, pôs-se a correr, cada vez mais, sem parar, até que caiu morto por terra. O erro dele foi o de não ter percebido que, se apenas pisasse num lugar sombrio, a sua sombra desapareceria e, se se sentasse ficando imóvel, não apareceriam mais as suas pegadas”.

Este texto, embora muito antigo, retrata um modo de viver bem característico de nossa modernidade, em que aprendemos a recusar as sombras, o que nos faz viver em uma espécie de exílio de nós mesmos. Estamos na era do medo e da síndrome do pânico.  Buscamos nos livrar de tudo o que é recôndito e de tudo o que em nós está a sussurar. Fugimos de nossas sombras, ao negá-las ou evitá-las. A nossa obsessão em buscar a nossa dimensão iluminada – como se ela existisse separada das sombras -, faz-nos correr para longe de nós. E esse exílio tem um alto preço e impacto em nossas vidas. O texto também fala sobre a dificuldade que temos de parar, de interromper um percurso que não vai bem, de ver e enxergar o que precisamos, de aceitar e mesmo de compreendermos o que estamos passando. De silenciar. Buscamos medicamentos que silenciem sintomas e formas de comunicação do nosso ser em nós.

Em 1888, o filósofo Nietzsche já falava da importância dos educadores para que possamos aprender a ver[2].  Para Nitzsche ver não é um fenômeno natural. Ver significa acostumar os olhos à quietude, à paciência, a aguardar atentamente as coisas, a protelar os juízos (…). Para ele, aprender a ver é uma espécie de preparação para uma vida contemplativa, que nos ensina uma competência muito importante – sobretudo no tempo em que nos encontrarmos -, chamada, por ele, de vontade forte, e que tem a ver com a capacidade de não reagirmos imediatamente a um estímulo a que nos vemos expostos. Ver é uma condição que se tece na integridade do ser – de luzes e sombras.

As sombras, assim como a dimensão escura da vida e a noite são condições de plena fecundidade. São dimensões que nos ensinam a linguagem do sonho, da intuição, da imaginação, da introspecção, do descanso, da entrega, sem as quais a vida fenece e empobrece.

 

Na casa que somos há bastante luz. E porque há luz, haverá sempre sombras. Mas também haverá a qualidade de um ver, que o filósofo Nietzsche exalta como aquela que acostuma os olhos à quietude, à paciência, a aguardar atentamente as coisas. É um ver que olha com justiça e respeito, a si, ao outro e ao mundo, com suavidade e sem medo, de tal forma, que a tudo pode regenerar. É tempo de aprender a acender o fogo interior do nosso coração, que a tudo ilumina e aquece, mesmo nas noites mais sombrias da existência.  É da escuridão que se tece a lucidez.

 

[1] Nietzsche, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos (ou como se filosofa com um martelo). Petrópolis: Editora Vozes, 2014 e Han, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.

[2] Merton, Thomas. A Via de Chuang Tzu. 5ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1989, pp. 197-198 (XXXI).

 

É da escuridão que se tece a lucidez.

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais

Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.

Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF

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