artigo de maria trincão maia
O Estranho Estrangeiro
3 MIN DE LEITURA | Revista 36
No outro dia dirigi-me a uma doca GIRA (empresa que tem bicicletas elétricas por subscrição, em Lisboa) e por um erro de sistema nenhuma delas estava disponível para sair. Estava um homem na mesma situação, cuja nacionalidade desconheço, mas que acabamos por juntos ir à procura de uma doca funcional. No caminho fomos conversando, ele estava muito espantado porque em Lisboa todos falavam inglês e que havia mais estrangeiros que portugueses, quase. Ele estava a fazer o doutoramento em engenharia civil no Instituto Superior Técnico. Disse-lhe que estudava em Belas Artes, ao que ele perguntou: já abriste uma galeria para fazer dinheiro?. Apressadamente respondi-lhe que não era esse tipo de artista, era designer de produto e estava a fazer mestrado em Design para a Sustentabilidade. Retorquiu prontamente: então e vais ficar cá? Tens de ir para fora todos os talentos portugueses estão no estrangeiro! Sabes que existem mais de 10 milhões de Portugueses espalhados pelo mundo.
Continuei gentilmente a sorrir e a aprender sobre o que é ser portuguesa pela visão daquele estranho estrangeiro. Expliquei-lhe que o meu interesse era na descolonização do design, e percebi-lhe o crescente desinteresse na minha pessoa.
Ele insistiu que de qualquer forma devia ir para fora para ganhar dinheiro e pouco educadamente afastou-se quando me ouviu dizer: is not about the money.
Fiquei com este episodio na cabeça, todo este cenário em que um perfeito desconhecido me diz o que devo ou não devo fazer da vida, de como se movem os portugueses ou mesmo o irreal número de portugueses no estrangeiro para me fazer acreditar que devia sair do meu próprio país. De como só quem fica em Portugal não tem talento, ou que somos um país turístico. Ainda assim, escolheu vir para Portugal tirar um doutoramento numa das faculdades como mais renome nacional. Pergunto-me porquê. Não sei o que lhe deu o direito de achar que eu não saberia o que fazer da minha vida ou de a gerir. Se a sua descomunal altura, se a nação de nascimento, se o facto de ser homem, branco e instruído. Sei que um profundo desconforto sobre a arrogância estrangeira me invadiu. Não sou nacionalista, não faço ovações de glórias passadas. Chamo invasões aos descobrimentos, não aplaudo termos sido o primeiro país a abolir a escravatura porque fomos um dos primeiros a começá-la. Acho que somos todos estruturalmente racistas, machistas e retrógrados. Temos uma baixa autoestima e achamos sempre que somos muito coitadinhos. Somos a cauda da europa velha e gasta. Somos os mais pobres de um continente egocêntrico e não conseguimos ver para além das palas que nos foram postas, por nós e pelo progresso.
De Lisboa, tenho saudades dos restaurantes velhos, das leitarias, das tascas, dos cafés. De uma capital que tinha tanto de aldeia como de cidade, que deixei há 6 anos ainda com tantas destas características e que volto a encontrar já tão descaracterizada. Uma coisa ele tem razão, Lisboa é quase estrangeira. Uma cidade “cosmopolita” com tudo o que isso implica, que a cada dia que passa se torna mais injusta, em que o fosso que separa as classes é cada vez maior. Que não é feita para todos os Portugueses, é feita para alguns e para os estrangeiros. Horrorizei-me quando vi as manchetes de um jornal de negócios a dizer orgulhosamente que os norte americanos acham que Lisboa é tão barato que é um roubo. Somos uma espécie de animais de estimação e figuras caricatas num país de faz de conta. Somos um porto seguro de gente rica, que pode esbanjar o que quiser porque mesmo na europa somos (quase) um país em desenvolvimento. E somos tão seguros, não há quase criminalidade, somos pobres, mas honrados. Ensinamentos preciosos de Salazar. Somos um país pobre, injusto e ilusório. Em que a violência doméstica é crescente e as dificuldades também. Que se acredita na meritocracia e que, sabe se lá porquê, se fala de um quinto império. Ainda se espera que D. Sebastião venha do nevoeiro, não fossemos nós colonizadores, missionários e católicos cheios de complexos de salvador branco.
Ainda assim disse àquele estanho estrangeiro que não iria embora, que não queria ir embora. Porque apesar de todos os defeitos, existe tanto para descobrir. Tanto para resgatar, tanto para relembrar. Porque acredito que quando começarmos a lembrar de onde somos, que terra é esta, quando ouvirmos o que os nossos ancestrais ainda nos têm para dizer, talvez aí conseguiremos reconstruir a nossa identidade. Não a identidade portuguesa que hoje temos, mas aquela que as pedras contam, que as árvores nativas ainda contam, que os contos populares ainda têm por baixo do manto católico. Talvez compreenderemos que o primeiro rei de Portugal não foi Afonso Henriques, mas a Rainha Dona Teresa de Leão. E mesmo assim percebermos que antes disso havia este território, terra de serpentes.
Que antes da igreja católica dominar havia histórias, havia vida, havia povos. E que nós descendemos desses povos e de tantos outros. Que somos uma mistura, que existiam deuses e deusas, entidades e espíritos.
Sinto muitas vezes que nos foi roubada a memória, a memória de quem somos. E lembro-me sempre de uma frase, que já está algures modificada pelo tempo, de um chefe de uma tribo indígena: nós sabemos de onde vimos e isso dá-nos força e uma vantagem, mas os brancos não sabem. Acharíamos sempre que falam dos brancos do Brasil, mas para mim falam mais longe do que isso. Falam dos brancos europeus, profundamente perdidos a quem a história que chega é a escrita, a encomendada, a história dos vencedores.
Somos órfãos de nós próprios e não sabemos.
P.S. Recomendo vivamente a leitura do livro: Contos da Serpente, da Sofia Batalha. 😉
De uma capital que tinha tanto de aldeia como de cidade, que deixei há 6 anos ainda com tantas destas características e que volto a encontrar já tão descaracterizada. .
Maria Trincão Maia
Editora da Revista
Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.
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