Onde mora o coração, histórias e paisagens
Coluna de Ana Sevinate2 MIN DE LEITURA | Revista 36
o dente-de-leão
“A flor está poisada no lugar de florir
(…)
A semente está poisada no lugar de padecer.”
Daniel Faria
É tão curiosa a palavra humanizar. Este verbo tão urgente. Ao mesmo tempo, com tanto e com tão pouco sentido. Diz-nos que nos tornámos desumanos. Diz-nos que deixámos de ser quem éramos no início. E se no início era o verbo, regressemos então ao início. E no início era também a semente. E a semente é assim.
Pequenas hélices percorrem os céus num rodopio suave, despretensioso e firme. E sempre em torno do seu próprio eixo. A direção e o ponto de aterragem é tão somente aquela que o vento e a semente combinaram entre si. Incómodas para uns, admiráveis para outros. São ambas as coisas, uma e outra. Voam e sobrevoam para além da opinião alheia. A verdade é a sua, alinhada com a do vento. A semente etérea e fofa já transporta o rugido do leão, aquando do regresso do sol na sua viagem ao sul. Esvoaçando como um tule casto e transparente, ilude-nos e não pede permissão. Não se alimenta nem de agrados nem tão pouco de salamaleques sofisticados. O direito à existência é um porta-estandarte e a pertença é irrefutável evidência.
Diz-nos então o dente-de-leão que humanizar, devolver a humanidade à nossa existência, é reconhecer o direito à vida e à singularidade livre, biográfica e inteira.
A flor amarela cobre-se de raios e de espírito, é juba e é coroa. Na sombra da sua semente traz a memória da nossa. Celebra-se inteira e abraça o seu lugar, empurrando, abrindo espaço. Não pede desculpa. O seu nariz empinado não é arrogante nem é presunçoso. É gentil. Sem se esconder, a cor solar faz questão de anunciar a sua chegada com um sorriso. Não teme pela sua presença, assume-a e glorifica-a. Podemos irritarmo-nos com ela quando se atreve a despentear-nos o jardim aprumado, mas no final das contas vem tão somente relembrar-nos do próprio lugar da zanga. Aquela faísca que percorre o corpo de cada vez que alguém põe em causa aquilo em que o nosso coração, de leão, acredita.
Diz-nos então o dente-de-leão que humanizar, devolver a humanidade à nossa existência, é reclamar a centelha que nos anima e que recupera o sentido.
A folha tem dentes de leão, na coragem generosa de quem se oferece ao mundo. O dente-de-leão é doçura e amargo de boca. Com pés de lã e tom garrido, veste-se inteiro. O pompom veste manto de rei. O caule é cetro nobre na sua generosidade. A soberania que não é nem domínio nem violência. Não pede licença nem destrói. Sem culpa nem vergonha é daninho e é espontâneo. Os espaços vazios são o seu trono. E melhor do que ninguém sabe como cair por terra e jogar-se no ar. Como ninguém, sabe tão bem morrer como sabe viver.
Diz-nos então o dente-de-leão que humanizar, devolver a humanidade à nossa existência, é lembrar a ordem e o ciclo natural de todas as coisas.
Humanizar, diz-nos o dente-de-leão, na sua leveza imprudente e em forma de estrela, é tornar natural. Humanizar, diz-nos o dente-de-leão, na sua teimosia irreverente e brava, é ser íntegro.
Humanizar, diz-nos o dente-de-leão, na sua fogosidade irresistível, é ser digno e digno de se ser.
É tão curiosa a palavra humanizar. Ao mesmo tempo, com tanto e com tão pouco sentido. Poderíamos dizer antes “animar”. Devolver a alma e tornar sagrado o gesto e o olhar. Poderíamos dizer antes “naturalizar”. Devolver a paisagem desalinhada e amorosa ao coração humano.
E num sopro, as sementes floreiam caminhos possíveis no ar. E quando uma semente, em forma de hélice, me poisa no cabelo, sinto-me mais pessoa. E quando uma semente aterra num raminho de árvore, percebo que sou parte do bosque. E, por isso, ainda mais pessoa. E quando outra semente beija a asa de um pássaro, entendo que ser pessoa é proteger o lugar de todas as existências.
Como ninguém, sabe tão bem morrer como sabe viver.
Ana Sevinate
Psicóloga clínica e psicoterapeuta
Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida.
Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.
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