artigo de sofia batalha
Mudança de percepção sobre o nosso lugar na teia das coisas
Parte II – Continuação do artigo da Revista 34
5 MIN DE LEITURA | Revista 36
A Imaginação Radical
Por isso é que um lugar é sempre algo tão rico porque nos acompanha toda a vida e podemos escolher usufruir das suas aprendizagens, significados e sabedoria, pois os lugares são eternamente dinâmicos e daí a importância da imaginação radical.
Hoje em dia a imaginação é uma dimensão da psique e do corpo altamente negligenciada, desvalorizada, invalidada e mesmo invisível. “Estás só a imaginar coisas”.
Nada do que imaginamos conseguimos medir, quantificar ou tocar, logo “não existe”. No entanto, todos sabemos, pelo menos até certo ponto, o quão importante é todo esse mundo misterioso onde residem complexas relações não cartesianas, não mensuráveis ou quantificáveis, mas qualificáveis. A imaginação é um aliado fundamental, exactamente como algo completamente fora da realidade, “inútil” e desviada dos “factos”. Como vivemos numa cultura de valores cartesianos – daí também o extrativismo cognitivo (expressão cunhada por Bayo Akomolafe) – desvalorizamos a nossa própria imaginação, pois aprendemos desde pequeninos a calá-la. Todo o processo de escolarização é baseada principalmente em factos, causalidade e linearidade. Neste contexto cultural pode haver momentos ou pessoas que nos inspirem a nutrir e dar colo à nossa imaginação, mas essa não é a norma.
A questão é que a imaginação, como ferramenta humana de integração, que nos permite ganhar perspetiva sobre as coisas, fora das limitações objectivas. Muita da nossa sabedoria imanente só é acessível através da imaginação, quando nos abrimos a outras dimensões de sabedoria, reverberação e perceção.
Entre o Mapa e o Território
Não pretendo definir ou limitar a vossa perceção individual sobre estes conceitos, quero apenas trazer esta ideia do mapa como um modelo, mais vivo ou inerte, e o território como o próprio corpo, ou a própria relação direta e não mediada entre as coisas.
Temos as várias dimensões de saber e de interação com a realidade, que no contexto cultural onde nos encontramos nos leva à lente da unilateralidade das várias dimensões do nosso ser ou pelo menos na sua valorização.
A imaginação não é a única percepção desvalorizada do nosso ser, temos também a consciência holística, o espírito, a alma e o coração, portais diferentes de acesso à diversa realidade das coisas. Portais não hierárquicos ou polarizados, numa limitação a preto e branco entre certo e errado, pois este é o convite à diversidade. Todos temos muitas formas de olhar para uma coisa, muitas maneiras de interagir e co-criar a nossa própria realidade. E nada disto é apenas centrado na mente, onde tudo o que não seja palpável, planeável ou objectivo, não existe ou não é valorizado. O que é um enorme desafio criando enormes paradoxos internos, pois, esta forma de estar, ser e ver o mundo torna-o mudo. Quando apenas procuramos o valor da produtividade, factual, quantificável e objectiva. Ora a objetividade tem a ver com retirar o contexto às coisas e, ao desvinculamos tudo do contexto, retiramos-lhe vida e usamos tudo para o nosso limitado benefício (de curto prazo).
É aqui que o discurso cultural se torna insidioso e desvinculado: interpretando a Terra – paisagens, lugares, ecossistemas, biosfera – apenas como recurso inerte e só e apenas em função do que é directamente útil aos humanos.
Em vez da Terra como abraço, fonte, origem e base essencial de toda a vida. É daquelas violências surdas que alguns sentem na pele, no corpo e nos ossos, quando dialogamos com os lugares que ousamos ouvir. Sentimos o seu grito, pois não são passivos ou inertes, nem mudos. Qualquer paisagem têm toda uma história, algo não verbalizado, mas sentido. Não é por acaso que procuramos esses lugares que residem no nosso coração e memória, se não conseguimos estar neles temos imensas saudades, a falta de algo que esquecemos.
Instinto
A integração entre a consciência, espírito e coração é essencial para voltarmos a vivenciar de forma inteira os nossos próprios espaços. Na base do corpo está alojada a sabedoria essencial do instinto, regida pelo útero e intestino, a sabedoria mais arcaica e primeva. Esta inteligência arcaica e primitiva não é inferior ou menos inteligente que o neocórtex. Aloja-se na zona da bacia, o maior osso do corpo e a charneira entre a terra e o céu, a zona sacra. Aqui reside uma energia antiga e vasta, do inconsciente profundo, a sabedoria que não conseguimos definir, a energia do instinto, relações primárias de acesso e ativação da própria vida. Está correlacionada com a energia sexual e a criatividade, assim como com o poder de manutenção e resgate da própria vida em profunda reverência, estando sempre em constante e profunda interação com o sítio, tempo, espaço e lugar de onde nos encontramos, assim como com os ciclos de vida ou ciclos mensais.
Temos uma rede neural no intestino, importantíssima, assim como a rede neural do coração e ambas comunicam mais para o cérebro do que o cérebro para elas, trazendo informação fulcral não concretizável em palavras.
São todas aquelas sensações que quando estamos despertas, presentes e inteiras são mais fáceis de identificar, muitas vezes tão rápidas como ver um carro que ter de nos desviar. Essas frações de segundo de interação profunda com todo o contexto, falam de um dos propósitos do intestino, tal como o útero que guardam a criação da própria vida.
Intuição e Razão
Passando deste centro de energia mais instintiva e primeva, subimos agora pelo corpo até ao coração, onde reside a intuição, onde tudo se torna mais subtil e delicado e não tão cru ou visceral. É pelo coração que ouvimos mensagens, símbolos, metáforas, histórias, mitos ou memórias.
O coração está em contacto com os múltiplos contextos que nos envolvem. O instinto no intestino e a intuição no coração ligam-se pelo corpo, estando constantemente em diálogo não verbal profundo. Reverberando melodicamente com a teia que nos sustem.
Mais acima, na cabeça, encontramos o centro cognitivo principal, da razão e consciência: o neocórtex. Que nos permite ter a sensação de tempo, prever, planear e organizar, o que é essencial à sobrevivência. Contudo, somos aculturados a apenas estar desta forma no mundo, achamos que pensamos sobre as coisas isoladamente e de forma lógica e objetiva. Mas este valioso órgão “de pensar” está assente no corpo e ao negligenciarmos os outros centros, exilamos a riqueza da nossa sabedoria intrínseca, das relações directas com as coisas.
Ao permitir valorizar a presença destes três centros em nós, a percepção muda, torna-se integrada e viva. Estes três centros essenciais de energia e perceção apenas requerem alguma atenção, simplesmente reconhecer que existem, pois, na verdade, não temos que fazer nada de especial para os activar, entender ou concluir. Apenas acolher estes outros modos de saber, outras perceções mesmo não havendo razões lógicas que os validem ou justifiquem.
O convite desta mudança de percepção é relembrarmos da energia selvagem, que fala da forma como nos relacionamos integralmente com os lugares e o corpo. E o que é isto de ser selvagem? É alguém despenteado, sem filtros, mas livre? O selvagem vive nas possibilidades, nesta riqueza constante, viva e dinâmica à nossa volta. Temos o potente útero, o que guarda grande parte da energia selvagem feminina, estando também associado à energia do instinto e trazendo a presença forte, que não é nem boa, nem má. O inconsciente, que não está apenas na cabeça, pois habita o corpo, é a paisagem que não conseguimos domar, é o lugar do selvagem, onde habitam todas as potencialidades mas também as sombras.
O convite desta mudança de percepção é relembrarmos da energia selvagem, que fala da forma como nos relacionamos integralmente com os lugares e o corpo. E o que é isto de ser selvagem?
Sofia Batalha
Eco-Mitologia e Ecopsicologia; Fundadora e Editora da Revista
Mamífera, autora, mulher-mãe, tecelã de perguntas e desmanteladora o capitalismo-global-colonial-tecnológico um dia de cada vez. Desajeitada poetiza de prosas, sem conhecimentos gramaticais. Peregrina pelas paisagens interiores e exteriores, recordando práticas antigas terrestres, em presença radical, escuta activa, ecopsicologia, arte, êxtase, e escrita.
Certificada em Ecopsicologia e Mitologia Aplicada pela Pacifica University, nos EUA. Identifico-me como pós-activista, fazendo parte do Advisory Board da The Emergence Network.
*Homenagear hystera. Recordar a capacidade de resposta. (des)aprender em conjunto.
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Autora de 11 livros & 2 (Des)Formações
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