Ecoespiritualidade

Coluna de Jorge Moreira

5 MIN DE LEITURA | Revista 36

Julia Butterfly Hill

A borboleta que viveu numa árvore

Parte II

De volta a casa, Julia vendeu tudo o que tinha, exceto o seu violino e umas obras de arte, e com esse dinheiro comprou uma tenda e um saco de dormir. De seguida, sem saber como poderia fazer para salvar as florestas de sequoias, regressou à Califórnia em meados de novembro de 1997. A receção de Hill pelos ativistas presentes envolvidos na luta pela salvaguarda das florestas locais não foi fácil. Se ela não fosse persistente, teria desistido. Porém, numa ação local, ela teve uma força interior que a catapultou para os microfones e um ativista percebeu o seu potencial, levando-a para o acampamento-base na floresta, onde se fazia a desobediência civil através do envio de pessoas para se sentarem em cima das árvores, permanecendo nelas alguns dias. Também aqui foi ignorada, até que surgiu um ativista que tratava da logística a pedir pessoas para se sentarem na Luna, e como Hill foi a única pessoa a se disponibilizar, mesmo sem treino, foi enviada para a sequoia milenar.

Luna foi descoberta por ativistas do Earth First!, em outubro de 1997, quando numa ação de reconhecimento, viram que esta gigante se encontrava marcada para corte e decidiram salvá-la. Uns dias mais tarde, estes ativistas construíram uma plataforma em cima da árvore, sob o luar de uma lua cheia, e começaram a sentar-se lá para a proteger do abate. O nome Luna surge nessa sequência, já que em espanhol, Luna quer dizer Lua.

O caminho que Hill fez até à Luna foi um enorme suplício, chuvoso, longo, ingreme, frio e lamacento, ao ponto de Hill se questionar sobre a sua determinação. Na manhã seguinte e depois de uma noite quase sem dormir e a partilhar um espaço minúsculo com outros ativistas no acampamento satélite, Julia olhou para a Luna e ficou impressionada com a sua imponência. Incrédula da sua capacidade de escalá-la, escutou o instrutor e lá começou a subir a corda com a ajuda do arnês. A dada altura, o vento fazia-a balançar muito e a distância da terra tornava o cenário cada vez mais assustador.

Foi quando Luna me chamou, fazendo com que minha atenção se desviasse da pequena corda fina para o tronco maciço da árvore. E em vez de sentir medo, simplesmente comecei a examinar esta árvore incrível que estava a escalar. (…) Fechei os olhos, coloquei a minha testa, as minhas mãos e os meus pés na Luna. Imaginei a minha energia a fluir pelo tronco através das suas raízes até o chão. Isso ajudou-me a sentir-me segura. Senti a massa do seu troco e essa energia profunda e conectada. “Eu vou ficar bem”, pensei. “Eu só preciso subir. Luna cuidará do resto.”[1].

Hill levou entre 15 e 20 minutos a chegar até à plataforma de 1,8 por 2,4 metros, onde já se encontravam outros dois ativistas. Uma segunda plataforma, mais pequena, que continha comida, água, suprimentos, cordas e lonas, estava suspensa por um grande galho, que também sustentava uma rede. Essa sua experiência em cima da Luna durou umas horas, já que os ativistas anteriores decidiram ficar ainda mais uma noite na sequoia. Na manhã seguinte, quando estes ativistas desceram, instalou-se uma tempestade severa, que dificultou a subida. Por fim, Hill e mais dois colegas se instalaram na plataforma. Ficou cinco dias como inicialmente previsto, descendo no sexto. Mas o descanso foi breve, já que voltou novamente para a Luna para substituir os colegas que lá ficaram. Desta vez, também desceu ao sexto dia, mas bastante doente. Depois de recuperar, Julia Butterfly Hill voltou para a plataforma da Luna e lá permaneceu cerca de dois anos. Teve a oportunidade e a sensibilidade de se ligar à Luna de forma profunda:

No princípio estava com receio, mas depois comecei a prestar atenção à árvore, retirando forças da árvore. Conseguia ver todas as suas cicatrizes e feridas dos incêndios e raios. Estava a ligar-me [a ela] espiritualmente. Algumas vezes retirava os sapatos e, assim conseguia sentir a árvore. (…) [Quando a Pacific Lumber começou a explorar a madeira na parte mais íngreme do cume e puxando os toros de helicóptero] dei por mim a chorar muito e a abraçar a Luna, dizendo-lhe o quanto lamentava. … Depois, descobri que estava a ser coberta pela seiva que saia do corpo dela, de todo o lado, e apercebi-me ‘oh, meu Deus, tu também estás a chorar’[2].

Neste testemunho intuitivo de Hill fica expresso a ligação de Luna com as outras árvores à sua volta que estavam a ser abatidas. Afinal, hoje já sabemos que as árvores se encontram conectadas umas às outras numa espécie de sociedade, trocando informação e prestando auxílio. O abate de vizinhas e companheiras traz impacto a todo o sistema.

Julia sobreviveu estoicamente ao assédio, à solidão, à dúvida, ao frio, à privação, às tentativas inacreditáveis de a derrubar e a dois invernos rigorosos sob a influência do El Niño. Numa das tempestades que enfrentou, com chuva e ventos superiores a 120km/h, (imagina-se como será estar em cima de uma árvore gigante no topo de uma colina) pensou que não sobreviria. Saiu dela transformada:

Assim que a tempestade terminou, percebi que, ao largar todos os apegos, incluindo o meu apego a mim mesmo, as pessoas não tinham mais poder sobre mim. Elas poderiam tirar a minha vida se sentissem a necessidade, mas eu não iria mais viver a minha vida com medo, como muitas pessoas fazem, abanadas pela nossa sociedade desconectada. Ia viver a minha vida guiada pela fonte superior, a fonte da Criação.

Eu não poderia ter compreendido isto sem ter sido quebrada emocionalmente, espiritualmente, mentalmente e fisicamente. Eu tive que ser espancada pela humanidade. Eu tive que ser agredida pela Mãe Natureza. Eu tive que ser quebrada até que não visse nenhuma esperança, até que enlouquecesse, até que finalmente deixasse ir. Só então poderia ser reconstruída; só então poderia ser preenchida com quem deveria ser. Só então poderia me tornar o meu eu superior.

Essa é a mensagem da borboleta. Eu tinha passado pela escuridão e as tempestades e tinha sido transformada. Eu era a prova viva do poder da metamorfose[3].

 

Na minha leitura, aqui se torna claro uma segunda metamorfose, aquela que a maioria dos mestres espirituais passam antes da iluminação, em que a dureza das provas expele todo o apego e egoísmo do eu inferior, a personalidade, que surge renascida pela Luz do Eu Interior, a nossa Centelha Divina que somos na realidade, mas que precisamos alcançar na nossa Humanidade.

Quando quase morri naquela mãe de todas as tempestades, o meu medo de morrer também morreu. Deixar isso libertou-me, como a borboleta se liberta de seu casulo. Comecei a viver dia a dia, momento a momento, respiração a respiração e oração a oração. Antes que eu percebesse, tinha alcançado a marca dos cem dias que eu pensava que nunca veria[4].

 

Julia Butterfly Hill não viveu só 100 dias na árvore. No total foram 738 dias, entre 10 de dezembro de 1997 e 18 de dezembro de 1999, numa pequena plataforma de madeira coberta por plásticos, em cima de uma sequoia de 60 metros e com cerca de 1500 anos de existência. Ficou firme até a empresa concordar em salvaguardar uma área apreciável em volta da Luna. Ao longo da sua estadia deu várias entrevistas a órgãos de comunicação social, que foram cruciais para difundir a notícia e salvar a sua vida, já que várias ações realizadas pela madeireira, para obrigar Hill a descer, eram extremamente violentas. No Dia da Terra de 1999 teve uma visita surpresa das cantoras Joan Baez e Bonnie Raitt, que passaram um dia com ela. Quando finalmente e depois de muita pressão pública, institucional e diálogo houve acordo para salvaguardar a Luna e uma área envolvente, Julia desceu da árvore.

 

Referências Bibliográficas:

Brazil, E. (1998). Article. San Francisco Examiner, 12 Februar, A1.

Fitzgerald, D. (2002). Julia Butterfly Hill: Saving the Redwoods. Lerner Publications.

Hill, J. B. (2001). The legacy of Luna: the story of a tree, a woman, and the struggle to save the redwoods. HarperCollins e-books.

Hill, J. B. (2022). Poema: Arco-íris. Facebook. https://www.facebook.com/JuliaButterflyHillOfficial/posts/5330009617032780

[1](Hill, 2001, Chapter 1)

[2] (Brazil, 1998, p. A1)

[3] (Hill, 2001, Chapter 7)

[4] ibid

 

 No total foram 738 dias, entre 10 de dezembro de 1997 e 18 de dezembro de 1999, numa pequena plataforma de madeira coberta por plásticos, em cima de uma sequoia de 60 metros e com cerca de 1500 anos de existência.

Jorge Moreira

Jorge Moreira

Ambientalista e Investigador

Licenciado em Ciências do Ambiente, Minor em Conservação do Património Natural, mestre em Cidadania Ambiental e Participação, pela Universidade Aberta, e Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É bolseiro FCT e investigador do Centre for Functional Ecology, Science for People & the Planet da Universidade de Coimbra.
É vice-presidente da FAPAS - Associação Ambientalista para a Conservação da Biodiversidade; dirigente da Sociedade de Ética Ambiental, dos movimentos cívicos Alvorecer Florestal e Aliança pela Floresta Autóctone.
É autor de vários artigos dedicados ao ambiente e voluntário em inúmeras ações de defesa, conservação, promoção e recuperação do património natural.
Tem desenvolvido investigação nas áreas da Ética Ambiental, Educação Ambiental, Sustentabilidade, Alterações Climáticas, Ecologia Profunda e Ecologia Espiritual, onde tem realizado conferências e promovido os temas.

shakti@sapo.pt