Biografia dos dias sem princípio

Coluna de Inês peceguina

7  MIN DE LEITURA | Revista 36

Achatamento Humano

 

Uma das maiores dificuldades quando se desenvolvem os chamados estudos longitudinais ou seja, uma investigação que observa e recolhe elementos sobre os seus participantes em vários pontos temporais (idealmente, três, no mínimo), é conseguir identificar o efeito da causa. Sobretudo se os estudos acontecerem durante a infância. Porque a velocidade do desenvolvimento é maior. E é ainda mais difícil quando o conteúdo, a dimensão em análise, e as causas e efeitos, são de natureza comportamental, psicológica. Estou a falar sobre os estudos que, por exemplo, avaliam o efeito de uma intervenção educativa, ou terapêutica (não farmacológica), ou psicológica (sendo que muitas vezes, estas três se misturam…).  

É por isso que, tantas vezes, para além da variável* que assumimos que pode ter um impacto/efeito, digamos a qualidade da relação entre um educador e uma criança (causa), e a qualidade das relações que esta desenvolve e mantém com os seus pares (efeito), é preciso considerar outras tantas, neste caso, por exemplo, a qualidade da relação com os pais, as competências sociais da criança, a competência verbal, a idade, etc.

As crianças crescem. É difícil distinguir muitas vezes o efeito de uma experiência, da maturação natural da criança, do seu desenvolvimento. E este processo, do desenvolvimento, mantém-se para além da infância. Em teoria. Em teoria, pode manter-se a funcionar durante toda a vida de uma pessoa. Teoricamente. Contudo, na prática, tal não se verifica. E isso, é um problema. Complexo. Mais complexo do que medir os efeitos das variáveis preditoras. Porque para isso, existem já muito bons algoritmos, estatísticas multivariadas, capazes de isolar o efeito de cada variável, controlando os das restantes. Modelos que experimentam várias combinações, que completam (caso existam dados insuficientes), dados em falta, analisando padrões que o olho humano a nu, não consegue ver, ou consegue, mas noutro tempo e velocidade. Escrevia eu. O facto, é que o crescimento e o desenvolvimento, ou maturação, não são a mesmo coisa. E são menos ainda, quando o objecto, é a mente de uma pessoa. A sua dimensão psicológica, a sua existência subjectiva. Envelhecer não é sinónimo de ensabiar. Não senhor. E isso, é um grande problema.

O que acontece é que, na ausência de desafio mínimo à vida de uma pessoa, a repetição do gesto, do dizer, do fazer, do existir, o circulo que diariamente (com pequenas mudanças ao fim de semana) se percorre, de interacções repetidas, previsíveis, nos lugares e com as pessoas que já conhecemos, resulta muito possivelmente numa reta. O desenvolvimento, representado graficamente, é desenhado como uma linha, que se movimento, que sobe, com mais ou menos declive. Na infância saudável, em particular, nos primeiros anos, a curva tende a ser mais acentuada. Depois vai perdendo declive. A vida adulta, arrisco, sem nenhum controlo sobre nenhuma variável, e exclusivamente a partir da minha experiência subjectiva de observar os outros (e medi-los, nas palavras e nos gestos, com ou sem instrumentos devidamente aferidos para a população portuguesa), a vida adulta, dizia, transforma-se tantas vezes num planalto. Uma água parada. Com todos os problemas das águas paradas, com excepção de serem um banquete para muitos insectos. Grandes extensões de existência que permanecem iguais a si próprias ao longo do tempo. Ao longo dos dias. De tal modo, que se confundem com traços de personalidade. De tal forma, que o próprio desconhece muitas vezes esse achatamento. Essa zombificação. Uma existência panqueca; não é minha a expressão. Disse Foreman, fundador e director artístico do Ontological-Hysteric Theater (desde 1968 até aos dias de hoje), na sua peça The Gods are Pounding my Head (2005). Escreveu Foreman:

            “But today, I see within us all (myself included) the replacement of complex inner density with a new kind of self-evolving under the pressure of information overload and the technology of the “instantly available”. A new self that needs to contain less and less of an inner repertory of dense cultural inheritance—as we all become “pancake people”—spread wide and thin as we connect with that vast network of information accessed by the mere touch of a button.”

            Ou em Português, “Mas hoje, vejo dentro de todos nós (dentro de mim também) a substituição da densidade interna complexa por um novo tipo de auto-evolução sob a pressão da sobrecarga de informação e da tecnologia do “instantaneamente disponível”. Um novo eu que precisa conter cada vez menos um repertório interno de herança cultural densa — à medida que todos nos tornamos “gente de panqueca” — que se derrama à medida que nos ligamos com essa vasta rede de informações a que temos acesso através de um simples toque de um botão.”

Concordo com Foreman. Embora consiga pensar que o mesmo fenómeno de achatamento humano acontecesse já muito antes destas pressões informativas (ou des-informativas, ou ainda de-formativas). Creio mesmo que é mais simples, que não precisa desse overloading, nem desse toque que dispensa a ausência de toque da pele em absoluto. Não é deste tempo. Embora este tempo seja talvez o habitat perfeito para a precipitação do fenómeno.

Outro elemento que me parece também central, é o do tempo. A pessoa dos dias de hoje, não tem tempo. O tempo é dinheiro. O tempo é luxo. O tempo é para quem não tem nada que fazer. O tempo é para ocupar. É agenda. Tique-taque. Cronómetro. Metrónomo. Tempo não lento. Este é o tempo em que as actividades que requerem tempo, tais como o desenvolvimento, o crescimento, a maturação, são de difícil encaixe.

Curiosamente, é também o tempo em quem começam a surgir sinais do desejo desse tempo de processamento. Veja-se o caso do pão. A massa-velha, massa-mãe, fermentação natural. Diz que sabe melhor. Que o aparelho digestivo se rejubila, que as padarias e os cafés deste e de outros lugares se enchem de importância ao anunciar o seu pão feito como antigamente. Pão com tempo. Para pessoas sem tempo.

Mas regressemos ao problema. Em que medida este alisar do desenvolvimento se constitui como um problema? Para o próprio, e para o outro.

            Objectifiquemos.

a) Para o próprio o problema pode não ser percebido como se fosse problema. É como se a pessoa durante um período de tempo da sua vida fosse aprendendo a utilizar certas ferramentas, que lhe permitem observar e dar sentido ao mundo, aos desafios; que orientam as suas interações e relações. Depois, quando/se os seus movimentos se circunscrevem aos mesmos ciclos, às mesmas tarefas, às mesmas interações e relações, essas ferramentas adquirem uma agilidade. São as preferidas. Ficam ali no bolso da frente. E a pessoa habitua-se. Servem para tudo. Caso a pessoa se veja inesperadamente confrontada com alguma novidade, um novo desafio, um novo problema, uma nova pessoa com outra forma de pensar e de se comportar, uma pessoa que vive de outra forma, que sonha de outra forma, que ouve de outra forma, que come, veste, anda, de outra forma, então, é muito, muito possível, que a pessoa fique confusa. Não confuso-curioso, como acontece na infância, não confuso-interessado-desafiado, como acontece na adolescência, mas confuso-irritado-confuso-nervoso-confuso-agressivo-ameaçado-confuso-perdido. À pessoa que se achatou na sua existência, falta espessura e densidade. Falta plasticidade. Caracteriza-se pela rigidez do pensamento. A impossibilidade da descentração cognitiva, afectiva, emocional. Na presença da diferença, qualquer diferença, não consegue imaginar. E porque lhe falta profundidade, reage. Reage com agressividade. O medo tem uma força grande nestas pessoas. Perde-se o norte no novo. O novo assusta. Não convida à experiência. Convida ao refúgio. Escava um buraco gigante. A pessoa de um lado. A outra pessoa no abismo infinito, que a separa do primeiro.

b) Para o outro, o outro diferente, entenda-se, já que com o outro que seja idêntico não há lugar para o conflito, apenas para a harmonia transparente; para o outro, que para além do pão de fermentação lenta, preservou a inclinação da sua curva desenvolvimental, mesmo que com declive menos acentuado, a interação e convivência com a pessoa-panqueca constitui-se muitas vezes como um desassossego daqueles de fazer perder a fé na humanidade, o que quer que isso possa significar. A percepção desse abismo, essa impossibilidade de chegar à compreensão do ou com o outro chega a ser dolorosa. Ao outro, o primeiro, não causa dor. Porque o outro, o primeiro, não tenta chegar a lado nenhum. Está na sua linha reta, na sua ausência de curvatura, largura e profundidade desprezíveis. Euclides disse, sobre as linhas retas, que são comprimentos sem largura. Para quem consegue, ou para quem o faz mais naturalmente (porque também nestas coisas, haverá aqueles para quem é mais fácil manter a linha em subida e crescente densificação, desenvolvendo largura), a interação com a pessoa de profundidade desprezível é quase de certeza inibitória da relação. Como na geometria que se define por um conjunto de axiomas, o achatamento humano, à semelhança da reta, deixa a pessoa indefinida – objecto primitivo.

            É lamentável. E não se trata de uma questão de recursos. De acesso. De dinheiro. De tempo. De familia. De dote. De língua. De escola ou falta dela. Trata-se de muitos e múltiplos factores que convergem perigosamente na mesma direção. Uma e única direção. Existirão aqueles que são naturalmente mais susceptível a achatar, como outros mais susceptíveis a desenhar delicados e por vezes caóticos bordados de existência. E existirão ambientes, e contextos, e famílias, e pais e mães, e avós, e professores, e irmãos, e outros que facilitam ou empurram numa ou noutra direcção, que constrangem ou expandem numa ou noutra direção. Seja como for, no limite, é sempre uma perda. Uma impossibilidade. Um desperdício. Um adaptação também, talvez. Uma resposta. Uma forma de preservar o circuito. De lhe dar sentido. Um loop.

            A galinha da vizinha pode não ser mesmo melhor do que a minha… Ou, na língua inglesa, the grass (might not) be always greener on the other side of the fence; isto é, mais vale a pessoa ficar no seu quintal (caso o tenha), ou com a sua galinha (caso a tenha), em vez de se pôr com coisas, com ideias, a querer sair do seu perímetro, da sua reta. Há sempre riscos nestas coisas. Mas uma coisa, assim parece, e mais uma vez, o provérbio ajuda a dizer, se é para petiscar… então que se arrisque!

Ou mais vale um pássaro na mão?

E quem espera?

Alcança sempre?

E burro velho?

Aprende?

            O facto, é que o crescimento e o desenvolvimento, ou maturação, não são uma e a mesmo coisa. E são menos ainda, quando o objecto, é a mente de uma pessoa. A sua dimensão psicológica, a sua existência subjectiva. Envelhecer não é sinónimo de ensabiar. Não senhor. E isso, pode ser uma grande chatice.

 

 

*Em bom rigor, os conceitos mais utilizados neste tipo estudos para definir as variáveis, sendo que não é possível medir ou pesar rigorosamente, são: variável critério, e variável preditor. A primeira corresponde ao efeito – a variável dependente; a segunda corresponde à causa – a variável independente.  

 

Foreman, R. (2005). The gods are pounding my head. http://www.ontological.com/ProductionFiles/2005GodsArePoundingMyHead.html

Em que medida este alisar do desenvolvimento se constitui como um problema? Para o próprio, e para o outro.

Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.