Mitologia Criativa

Coluna de Élia Gonçalves

3 MIN DE LEITURA | Revista 35

Suster o Paradoxo

– para além da dualidade – 

“Ninguém me disse
que não podia colocar as coisas para trás. 

Foi-me dito uma vez, apenas, 
num sussurro,
“A lâmina é tão afiada – 
ela corta as coisas junto 
– não separa.”

David White

Nas grandes histórias e jornadas míticas, a determinada altura acabamos por entrar na floresta. Seja por nos perdemos, porque fugimos de uma experiência assustadora ou buscamos um lugar diferente, a floresta está lá. E, antes dela sairmos, existem lugares de solidão e desespero, medos e fantasias de terror, talvez até um esconderijo para dormir e acordar num lugar diferente. Com encontros de animais mágicos, casas feitas de doces ou de ossos, ou estranhas personagens que nos confrontam. Nestas alturas são-nos dadas tarefas aparentemente sem sentido, injustas até. Tarefas que parecem fazer perder tempo, quase esquecer o lugar de onde vimos, ou onde queremos chegar.

Nas nossas vidas diárias, estas situações parecem quase sempre insustentáveis. O trabalho que nos esgota e onde não nos reconhecemos. As dificuldades das relações. Os desafios do corpo. As portas que gostaríamos de fechar para dar lugar a um sonho que quer emergir. A frustração que toma conta, uma impaciência relativamente à espera, um forçar de situações, emoções, atos de coragem para os quais parecemos não estar prontos. Ou, pior, para os quais a vida não está pronta para nós.

Porém, o lugar onde a vida acontece – nos acontece – é absolutamente diferente do mundo dual no qual acreditamos viver. Essa dissonância entre a dualidade e paradoxo, se assim lhe quisermos chamar, causa-nos mais sofrimento do que os desafios em si, na medida em que nos dão uma imagem de que haveria uma solução para os nossos problemas, que não estamos a encontrar. 

Nestes tempos de noite escura da alma, de incertezas e feridas que rasgam, gosto de me agarrar a uma palavra. Ciclicidade.

Ciclicidade fala-nos de um eterno acontecer, de movimento lento, visível e invisível, que, na maioria das vezes, não depende de mim ou das minhas fantasias. Conecta-me com um processo orgânico onde as coisas transportam um tempo seu e o meu trabalho (bem difícil, na verdade) é aprender a respeitar esse mesmo tempo, saindo do caminho.

Nas novas versões das histórias, matamos dragões, vencemos as sombras e despertamos princesas com um beijo de amor eterno. Porém, as versões mais antigas não são tão “limpas”. Os obstáculos tornam-se caminhos, despertamos os dragões dentro de nós, ou talvez nos encontremos por inteiro quando voamos juntos, humano e criatura selvagem. 

Nestas versões mais ancestrais o incerto e o improvável dão as mãos. O que parece ser nem sempre o é. As pistas para a saída do desafio são pouco explícitas, demoram tempo e nem sempre trazem o esperado. Ainda assim, a história acontece.

Estes são, em toda a sua complexidade, tempos de paradoxo. Silêncios e ruido, alegria e dor, confusão e serenidade. Exaurimo-nos na tentativa da arrumação, da catalogação, das soluções brilhantes, limpas e luminosas. Percecionamo-nos duais e assim não é. Não somos um ou outro, somos um e outro, sempre tecendo um eterno sendo, pendendo de um lado para outro ou permanecendo no meio, a paisagem mais difícil, enquanto ganhamos consciência de quem somos. 

Abandonar a dualidade é viver no paradoxo. Há que sair desse olhar linear sobre “isto ou aquilo”. Antes de sair de um lugar para entrar noutro, precisamos de aprender a ficar. Permanecer entre ambos, por vezes com ambos. Suster o paradoxo, em vez de obrigarmo-nos a escolher, é o verdadeiro ato de coragem. Traz a permissão para uma outra via. Um olhar ampliado perante aquilo que parecia separado.

Eu ganho-me a mim mesma quando me permito “também ser isso.” A luz e a sombra, a dor e a alegria, a dança e a quietude. Sustermo-nos entre a dualidade é sair da dualidade. Pois o que é divergente necessita de tempo para se tornar íntimo connosco, com a nossa história e nos sussurrar outras paisagens. Para trazer movimentos diferentes na dança. E conhecer o berço do nascimento e da morte como um processo que acontece. 

Poder olhar os nossos dramas desde o lugar mitológico não retira a dor, mas compreende-se neles a presença de uma tarefa mítica. E as tarefas míticas ensinam-nos a suster. Varrer a cozinha e dormir junto às cinzas. Separar as sementes. Tecer uma camisa a partir de morugem. Cozer uma boneca que olha para o futuro. Picar o dedo no fuso e adormecer. Cavar a terra, quando não há qualquer pista de arbustos a crescer.

As tarefas mais simples, ritualísticas, rotineiras contam-nos sobre ciclicidade. Ensinam-nos a ficar connosco. Respirar desconforto e compaixão. Permanecer com que que há. Ficar no processo e deixar que as coisas aconteçam, mesmo quando nada vemos. Sem garantias. Sem recompensas. Abrindo a porta ao Mistério e à humildade. Durante quanto tempo? O tempo suficiente.

Porém, o lugar onde a vida acontece – nos acontece – é absolutamente diferente do mundo dual no qual acreditamos viver.

Élia Gonçalves

Élia Gonçalves

Colunista e Autora regular da Revista

Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal

Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa
Autora do Mito de Ophídia

elia.gonçalves@escolatranspessoal.com