Biografia dos dias sem princípio

Coluna de Inês peceguina

10 MIN DE LEITURA | Revista 35

Sobre os limites: Marcos do Desenvolvimento Infantil – Update!

“Similarity is the shadow of difference.”

Math Ridley in Nature via Nurture

(A semelhança é a sombra da diferença)

Quem em algum momento conviveu de perto com bebés e crianças, quer do ponto de vista pessoal e afectivo, quer do ponto de vista profissional, sabe que algumas conquistas do desenvolvimento infantil são esperadas em determinados momentos/idades (muitas vezes, infelizmente, com grande ansiedade). 

A investigação e a prática, ocupam-se em acumular dados, evidências, tempos, para depois, com o tempo e a quantidade de dados suficiente, analisar e identificar padrões. Perfis. Os chamados Marcos do Desenvolvimento Infantil (que têm aproximadamente uma centena de anos) até há uns dias, tinham por base os padrões de desenvolvimento das crianças, e as referidas conquistas, por exemplo, seguir o olhar, apontar, gatinhar, falar, andar, etc. (sendo que existem outros mais subtis e melhor conhecidos pelos técnicos da infância, devidamente habilitados), atingidas por 50% das crianças cujo desenvolvimento foi sendo registado nas bases de dados. O mesmo se passa com o peso, a altura, o perímetro cefálico, medidos habitualmente e regularmente nas consultas de pediatria (estes, creio, já com dados de referência para a população portuguesa). 

Em função das médias, do comum, das semelhanças, desenham-se depois os limites, as diferenças. 

E se por um lado, é cada vez mais premente na linguagem dos cuidadores e dos profissionais, a ideia de que cada criança tem o seu próprio ritmo, na prática, há limites, distâncias desse padrão que podem ser sinais de alerta, indicadores de possíveis dificuldades, acima do esperado, e assim, quando identificados atempadamente, e contextualizados (se o não forem, a sua interpretação perde significado e pode ser muito perigosa), são como ferramentas muito valiosas, que permitem responder de forma mais adequada à singularidade de cada criança, nos pontos específicos que a tornam vulnerável, evitando que essa vulnerabilidade se transforme numa gigante fonte de dificuldade e sofrimento.

O princípio, em princípio, seria este. Que os marcos do desenvolvimento fossem uma ferramenta, não necessariamente um rastreio. E menos ainda, uma checklist de percentis, de normalidade, sem atender ao ecossistema, à ecologia, à singularidade. 

Há poucos dias os Marcos do Desenvolvimento foram actualizados. No geral, foram adiadas no tempo algumas aquisições, e sublinhada a importância de compreender o desenvolvimento da primeira infância uma vez que, como acima referido, compreender estes checkpoints, permite criar condições e favorecer o desenvolvimento da criança, quando a distância entre as semelhanças é muito grade. Quando a sombra é maior. Quando a diversidade e unicidade já não são maravilhosas, caindo na caixa do “feitio” e da “personalidade forte”, para cair nas caixas que nenhum cuidador quer um dia ter de abrir (e nenhuma criança quer caber no seu interior). 

Importa ainda saber que os pontos de referência não têm sido consensuais (e continuam a não ser em alguns casos), e que a investigação que levou à determinação dos percentis é muitas vezes antiga e não tem por base amostras de crianças suficientemente grandes para que possam ser representativas (e menos ainda, representativas do desenvolvimento infantil nas populações cujas cultura e educação se afastam daquela que, já se sabe, constitui muitas vezes a referência – o ocidente, e o o(s) ocidentalizados).

Mas observemos algumas das mudanças importantes.

Ao avançar da métrica do percentil 50 (que representa a média para uma dada idade), estes marcos passaram a ter por base o percentil 75 – que representa a maioria das crianças. Naturalmente que esta mudança de critério, faz o ponteiro mover-se para idades mais avançadas,  permitindo mais espaço para a diversidade. 

Por exemplo, a compreensão do “não”, previamente considerada acontecer, em média, aos 9 meses, passou agora para os 12 meses e é providenciada uma descrição sobre o que/ou como se pode verificar (pára brevemente ou pára quando lhe dizem). Ser capaz de comer com uma colher (nos casos em que é feita essa introdução, porque existem outras abordagens, como sabemos), passou dos 18 para os 24 meses.   

Outra dimensão que passou a ser incluída com maior expressão, foi o desenvolvimento sócio-emocional. Uma das razões que motivou possivelmente esta atenção estará relacionada com o aumento do número de crianças com diagnósticos de autismo. Os profissionais que trabalham com crianças com autismo sabem que é possível observar alguns indicadores relacionados com a interacção e o envolvimento social desde cedo. Mas, novamente, é preciso que se observe continuidade destes sinais, e que sejam contextualizados. Por exemplo, é perfeitamente natural que uma criança de dois anos que visita anualmente o seu pediatra, não mostre as mesmas habilidades e competências sociais que são evidentes nos seus contextos familiares onde se sente confortável. 

Anyway, a nova lista dos Marcos de Desenvolvimento inclui indicadores do desenvolvimento social para ajudar à identificação precoce de problemáticas como o autismo. 

Grande parte das intervenções durante a primeira infância são tipicamente de natureza educacional (não médica) e têm a intenção de promover o desenvolvimento de competências novas, quer na área em que a criança mostra estar mais distante das semelhanças, onde se afasta para além desse ponto de referência dos 75%, quer nas suas áreas fortes. O trabalho dos terapeutas é muitas vezes desenvolvido a partir destes pontos fortes, porque são alimento da segurança para a criança, da sua percepção de ser capaz. E o trabalho, estende-se quase sempre para além dessa intervenção terapeuta – criança. Muitos profissionais (psicólogos e outros terapeutas) desenvolvem o seu trabalho na presença dos pais, favorecendo a que também os pais conheçam e aprendam algumas ferramentas para utilizar fora da consulta, para utilizar nos contextos habituais da criança. Esta participação dos pais, pode ter um impacto na qualidade do desenvolvimento da criança, nas competências particulares que ali são trabalhadas mas, muitas vezes, tem um efeito muito maior, e tão importantes, que é o do envolver, aproximar, criar canais de comunicação e de relação entre as crianças e os os seus cuidadores que muitas vezes se sentem muito perdidos e incapazes (para não dizer outras coisas mais difíceis de sentir) quando a sua criança é uma das crianças na zona de sombra. 

Há sempre perigos quando desenham limites. 

Há sempre perigos quando não se desenham limites. 

O ser humano, como outros animais, é limitado na sua existência. Nas suas possibilidades para ser. Para estar. Se é verdade que crescer numa família que dá suporte à criança, que expande os seus movimentos de exploração, autonomia e independência, é muitas vezes melhor do que crescer numa família que constantemente circunscreve e desacredita a criança – vais cair, não consegues, até admira, eu disse-te, e por aí fora, é também verdade que a ausência de linhas fronteiriças, sejam elas físicas, ou mentais, objectivas ou subjectivas, nos deixa quase sempre num estado de stateless. Não pertencer a lado nenhum.

Os parques infantis, esses lugares privilegiados para observar as dinâmicas familiares, são perfeitos para identificar estas linhas fronteiriças. Para contemplar com curiosidade a diversidade de possibilidades que existe. E para reconhecer que nem todas as possibilidades são bons caminhos para a criança. (Também não são para o adulto, mas é suposto que entre os dois, o adulto seja quem toma as decisões e quem cuida). 

Deixo aqui alguns maus exemplos:

Caso (ou caos) irmãs gémeas de 13/14 anos, e irmãos mais novos, os dois rapazes, de 6 e 4 anos (aproximadamente).

Enquanto os pais apanham sol (e vento, muito vento) na grande toalha mandala, comprada na praia o ano passado e que nunca devia ter sido lavada na máquina, porque os desenhos antes geométricos e simétricos, ficaram agora todos baralhados naquilo que parece um padrão psicadélico, mas sem a força das cores habituais, os pais, dizia eu, pedem (ou já nem pedem) às gémeas que vão cuidar dos irmãos mais novos. Que sejam responsáveis. Que não deixem que se magoem. Ou que magoem outros (acho que não houve indicações quando a esta parte). Que usem do que for preciso, para os manter a salvo. E sobretudo, que o façam durante muito tempo, o mais possível, sem interromper o seu descanso merecido. Quatro filhos, é muito filho!

As irmãs assumem este papel como se fosse a missão única das suas vidas. Vestidas com roupas absolutamente iguais – como forma de uniformizar a autoridade, e de apagar qualquer indício de individualidade; cabelo penteado exactamente da mesma forma. Sapatilhas iguais {pergunto-me se existe margem para a singularidade no(s) interior(es)}. 

Os irmãos.

O mais velho mostra uma ruga entre os olhos, daquelas de angústia. Não quer obviamente ali estar. 

O mais novo, em modo radar, mapeia o parque com os olhos à procura do próximo sarilho, e da possibilidade de fugir rapidamente, caso seja identificado (e será sempre, porque não há como fugir das irmãs-guarda-irmãos).

As irmãs dividem esforços. Nota-se que já há uma continuidade de tarefas, uma prática, sabem o que têm de fazer. Não sabem o que fazem. Nem sabem que fazem mal. E que não seria suposto fazerem, não assim. Que uma delas é especialista no mais velho, uma criança triste, que não quer brincar, ou se quer, é sozinho, e sem re-colocações do seu corpo no baloiço, no escorrega, na sua vida em geral; a outra, no mais novo, sempre preparada para o arranque rápido, para o grito de longo alcance – “Daviiiiiiiiiideeeeeeeeee!!!!!”, para a verificação sorrateira de que ninguém saiu de facto muito magoado dos paus que o Davide atirou, ou das lascas que entretanto saltaram, quando bateu com o pau herculianamente e o desfez em pequeninos resíduos perfeitos para o transporte de formigas ou até para os ninhos a que tantos passarocos neste tempo de primavera se dedicam. Obrigada Davide, dizem os pássaros. 

Assim a esta distância, vejo duas irmãs adolescentes que não são muito boas a cuidar dos irmãos. Primeiro, porque não deveriam ser elas a ter essa responsabilidade, assim desta forma aflita como demonstram exercê-la. Adivinha-se que um dia possam não querer ter filhos, ou que a qualidade das relações entre elas e os irmãos seja assim… Duvidosa. 

Estas adolescentes não conseguem distinguir-se uma da outra. Metaforicamente, não se distinguem também do papel dos cuidadores. E não conseguem traçar de forma clara e saudável os limites. Não deviam ter de o fazer. Corre mal. 

No geral, e assim de modo absolutamente arriscado, porque o tempo de observação foi curto e o contexto, um apenas, diria que os pequenos, o mais pequeno, precisa de ajuda para canalizar a sua agressividade sem ser num registo violento. Precisa que o deixem cair. Precisa de correr e de correr os riscos. O segundo mais pequeno, precisa que o deixem ficar no seu canto. Parece uma criança que gosta de brincadeiras mais suaves. Talvez fosse bom se não o obrigassem a fazer estas coisas físicas, que ele não quer. As irmãs… Precisaria de escrever um artigo só sobre as irmãs. De maneiras que, fico por aqui. 

 Caso criança de 3 anos DIY (aka, do-it-your-self ou faz-tu-mesmo, no bom português). 

Aproximamo-nos do castelo, cujo acesso é feito ou pelas escadas, ou pela rampa, através de uma corda que ali está fixa. A corda está mais alta que o habitual. Para conseguir lá chegar, a criança tem de ter pelo menos 120 cm. Talvez seja forma de evitar que crianças muito pequenas tentem subir. Ou pelo menos, que tentem subir sem ajuda. Enquanto espera pela sua vez, uma criança de 5 anos, aparece em modo shimmering-flash-pequeno-pónei, a criança de 3 anos DIY, acabados de estrear. Não chega à corda, longe disso. A mãe não chega logo a seguir, não não, vem em passo lento, poderia ter um chapéu daqueles daqueles super clichés da América Alabama, um ar absolutamente who cares, mas não tinha. Não tinha o chapéu, a atitude who cares estava lá, o tempo todo, numa confusão entre podes tudo, podes tudo sozinha, e se não conseguires, problema teu. 

A criança, podemos chamar-lhe Cindy, só porque combina com o pequeno-pónei brilhante, atira-se à corda, lá consegue apanhar com os seu dedos pequeninos e resolutos. Tem de conseguir, não há ali espaço para falhas. Tenta elevar-se, mas a técnica não é fácil. E ela é mesmo pequena. Aquilo não é mesmo para fazer sem ajuda. Observamos enquanto é óbvio que não vai conseguir. O corpo balança-se para a esquerda, depois para a direita, ela não sente como deve fazer o movimento, não há indicações de fora, não há mão ali a fazer sombra ao rabo, só para o caso, há uma mãe à distância, que lhe atira palavras de confiança, mas que daqui, à distância em que ela está, não se ouvem bem. A Cindy olha à volta, pede ajuda sem pedir, mostra medo, os olhos a brilhar como a crina cintilante do pónei roxo. O silêncio do medo de cair. A antecipação de não ter sido capaz. Atira-se para a frente. Está lixada. Só é possível subir a rampa, que tem a forma de uma meia lua virada na posição convexa, se se inclinar o corpo para trás, o peso para trás. Fez tudo errado. As indicações que chegaram não foram as necessárias. E não chegou a tempo a ajuda. Ela caiu. Não se magoou muito. Não houve espaço para isso. Houve uma desvalorização do esforço dela, do pedido de ajuda dela, e da bochecha dela que saiu dali vermelha. Não consegui ver-lhe o coração. Mas sei, tenho a certeza, que a repetição destas investidas de “desenrasca-te”, fazem a criança sentir-se muitas vezes perdida, desinvestida, numa solidão e independência que ela não quer, nem sabe, gerir. 

Uma das funções de um pai, ou de uma mãe, daquelas mais importantes, é ser capaz de dar segurança à criança. Ao mesmo tempo que lhe dá espaço para explorar. Ao mesmo tempo que confia, e reforça a confiança. Uma coisa é dizer, vai, tu consegues, mas ficar atento e dizer, não faz mal, se não conseguires, outra é dizer não tens outra opção se não conseguir, e não ser capaz de ouvir/ver os pedidos de ajuda, de colo, confundindo depois a capacidade que a criança tem para recalcar toda a angustia por ter falhado as expectativas, o não chorar, o não dar parte fraca, não pedir colo, como sinais de que é assim, que ela assim se faz rapidamente capaz. Que isso lhe dá uma carapaça de dureza. Bem, lá isso é verdade. Pode mesmo ajudar a construir uma carapaça. Que neste caso, não se tratando de uma tartaruga, é um artificio perigosos e pegajoso, que fica dentro da pessoa às vezes para todo o sempre.

São dois casos extremos. Sim. Que ocorreram quase em simultâneo no mesmo lugar, ao mesmo tempo. Também observei bons exemplos de contenção, de estabelecimento de limites, de comunicação, de afecto. 

Regressemos ao tema inicial – os benchmarks do desenvolvimento infantil. Os pontos de referência. Os limites entre as semelhanças e as diferenças e a partir de onde uma diferença passa a ser motivo de alerta e preocupação. 

O tema é difícil sim. E não haverá nunca um critério que possa ser universal, quando se trata de cada um destes marcos de desenvolvimento, porque existe mesmo diversidade individual, e depois cultural. Mas há sempre a questão do bem estar e da saúde mental que pode ser pensada para ajudar a reflectir sobre se o limite está no sítio mais ou menos ajustado, ou se poderia mover-se mais para cima ou mais para baixo. Há opções que são mais acertadas que outras. E há opções que são mesmo erradas. Seja como for, e como em tantos outros aspectos que são do domínio do crescer e tornar-se pessoa, vale a pena olhar à volta, ouvir e ver outros exemplos, pedir apoio, pedir ajuda, ter um olhar mais técnico, e distante dinâmica de cada família. Distante da história dessa dinâmica. Um olhar focal, com a intenção de ver, para além do  manifestamente visível.

 

A Cindy olha à volta, pede ajuda sem pedir, mostra medo, os olhos a brilhar como a crina cintilante do pónei roxo. O silêncio do medo de cair. A antecipação de não ter sido capaz. Atira-se para a frente.

Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.