Onde mora o coração, histórias e paisagens

Coluna de Ana Sevinate

3 MIN DE LEITURA | Revista 35

Rosa e a flor chamada bênção

Quando à noite desfolho e trinco as rosas.
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das noites luminosas,
O vento bailador das primaveras
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.”

Sophia de Mello Breyner Andresen 

História inspirada no “Milagre das Rosas” e nos meus pacientes.

Rosa traz no coração e nos brincos o testemunho de um milagre. São feitos da mais delicada filigrana. Herdados das avós. Um brinco de cada. À imagem do rendilhado da sua sensibilidade e do seu nervosismo, os brincos embalam-se no seu andar baloiçado e no seu coração alvoraçado. À imagem de uma rede neuronal, de uma rede capilar, de uma teia de micélios e da raiz de uma árvore, da filigrana dos brincos e do coração de Rosa transparece a fragilidade e a resiliência dos detalhes e dos retorcidos. Guardou neles as histórias das avós, mas neste gesto, foram preenchendo sorrateiramente e inteiramente o lugar da sua. Relíquia. O medo espreitando à janela, aguardando pelo golpe no coração. “Comporta-te como uma senhora, Rosa.” “Tem cuidado, Rosa.”

E contudo, Rosa traz no coração e no regaço “uma história que implora para ser contada” (C.S.). Sussurrada pelas paisagens que só ela habita. Brocado fino, que os espinhos envolvem. Espinhos à espera de arriscar. Um grito à espera de se soltar. Palavrões à espera de se desenlaçar. O sangue à espera de correr e o coração à espera de palpitar. Uma coreografia revelada a cada movimento dançada pela própria vida. A possibilidade de sonhar. E a possibilidade de arrancar pétalas com os dentes perante a incredibilidade e a zanga, sempre que o seu olhar assiste à loucura do mundo. Para que ela possa não enlouquecer também. “Preenche, Senhora, o teu lugar.” “Pica-te Rosa, no fuso e no espinho”. 

A história que Rosa, e que cada um de nós, traz no seu mais íntimo sonho, desejo e folego é fundamentalmente selvagem, silvestre, espontânea, daninha num coração cultivado ordenadamente. O medo do desconhecido, daquilo que rompe e interrompe a ordem conhecida e reconhecida, bane qualquer semente que o vento, a abelha ou o bico do pássaro possam trazer. É uma luta que se instala, dentro e fora. Arrancamos as ervas. E enlouquecemos mais um bocadinho. E se de cada vez que arrancamos obstinadamente o desconhecido, o selvagem, o espontâneo, o silvestre da Terra, arrancamos também o direito de viver e incorporar a nossa própria história? E será esta uma outra forma de dizer que a dor de uma Terra domesticada se revela também numa profunda, e cada vez maior, ausência de sentido? Tão simplesmente e tragicamente, porque rejeitamos as histórias que a Terra e o coração revelam e pelas quais nos suplicam. No cultivo massificado e intensivo do medo, ceifa-se, com violência, a própria vida. 

E contudo, entre a segurança do que já foi cultivado, percorrido, desfolhado e o bater do coração que Rosa consegue escutar quando silencia os fantasmas, neste lugar onde a luta, o impasse e o sofrimento se instalam, existe uma pequenina flor. Traz consigo a potência do desenlace e da ponte. Flor de cinco pétalas, em arranjo espiral, delicadas e finas, como um brinco de filigrana. Flor de cálice que transporta o gérmen da existência, livre e circular. Transporta a potência dos frutos de néctar doce. Rosa deu-lhe o nome de “bênção” e quando a contempla, restaura a fé. A flor traz consigo a permissão para respirar e o fim da luta. “Sê flor e espinhos Rosa.” Caem as rosas das pregas da saia, solta-se o grito. O sangue corre e o coração apressa-se. Liga-se à fonte. O medo, agora, só ao colo. Rosa arregaça as mangas perante a loucura do mundo. 

Daquela nascem outras flores e Rosa sabe que as bênçãos existem também para serem ofertadas. Das rosas nasce o alimento. E no milagre de Rosa e da Terra, a vida ganha a qualidade do sonho. E na bênção do sonho dorme a possibilidade do restauro, da reparação e do remédio. Dorme a prece de que possamos, cada um de nós, descobrir a força do céu que nos cobre de bênçãos. Estão à mão de semear. Para que possamos descobrir a força do gesto singelo de as oferecer uns aos outros. Tal e qual o gesto singelo de oferecer uma flor.

E contudo, entre a segurança do que já foi cultivado, percorrido, desfolhado e o bater do coração que Rosa consegue escutar quando silencia os fantasmas, neste lugar onde a luta, o impasse e o sofrimento se instalam, existe uma pequenina flor.

Ana Sevinate

Ana Sevinate

Psicóloga clínica e psicoterapeuta

Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida. 

Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.

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