artigo de sofia batalha

O último Rio Bravo

Crónica do rio silenciado 2004-2016

7 MIN DE LEITURA | Revista 35

O vale fundo rasga-se ao longo de cerca de 120 km, de norte para sul e pelas suas entranhas de pedra antiga correm águas bravas e livres. O vão profundo e côncavo das margens alberga e sustém muitas histórias de milhões de anos, que as águas tumultuosas guardam na sua memória e distribuem a cada corrente e reviravolta. Recordações vivas das profundezas da terra, das raízes que dela brotam, das patas que por ela caminham, das asas que por aqui voam e das barbatanas que entre as correntes nadam, numa rica e complexa matriz do xaile da vida.

Estas águas não são plácidas ou espelhadas, não. Estas águas não oferecem segurança, não. São águas vivas, de um rio selvagem e inquieto, águas cavadas e donas de si próprias, barulhentas e agitadas.

Correntes soberanas que perfuram a pedra, esculpindo penhascos e alimentando o vale. Águas antigas que gritam o seu poder acordando-nos do torpor da modernidade, abrindo espaço através do ruído branco da tecnologia e atravessando as ilusões de progresso. Águas ferozes que acolhem a sazonalidade da vida. Impermanentes.

As águas bravas não conhecem fronteiras, mas dizem os homens que vêm de Espanha, de Zamora e entram em Portugal pela serra de Montesinho. É peculiar o seu percurso e lugar, pois, pela fundura do seu vale alberga um microclima que ao longo das últimas glaciações  se tornou casa e corredor de ecossistemas únicos no mundo, numa diversificada comunidade de vida que inclui numerosas espécies hoje em perigo e protegidas por convenções internacionais. Um vale que se tornou refúgio de uma delicada diversidade singular de plantas, mamíferos, répteis, aves, anfíbios, peixes e insectos em mais de 20 habitats distintos. Relíquias selvagens e vivas, que guardam património um genético insubstituível, em desdobramento vivo há muitas eras. Um santuário indomado com a presença de humanos desde tempos arcaicos, como testemunham as figuras rupestres encontradas em várias zonas ao longo do vale datadas do período Paleolítico superior (30.000 – 8.000 A.C.).

A garganta do vale deste rio selvagem, o último da península ibérica, guarda vestígios singulares da memória da evolução da vida na região, tendo um importante papel para a manutenção da biodiversidade assim como da psico e neurodiversidade de todos nós.

Após milhões de anos de vida vibrante, e depois do primeiro movimento em 1996, a 30 de junho de 2008 foi adjudicado o silenciamento destas águas, agora aprisionadas por um volume de 1.102.240 metros cúbicos de betão com um custo total de 569 milhões de euros, calando o eco ancestral deste lugar intocado. Em 2016, ano em que a “mãe de todas as barragens” foi inaugurada, as bravas correntes destas águas antigas foram domesticadas por 14.710 toneladas de aço em armaduras. A cerca de 13 quilómetros da foz do rio, a barragem estrangula a sua alma, deslaçando os nós da sua emaranhada e singular vida, sufocando a valiosa teia que aqui existia. Das suas margens foram escavadas 2.903.708 metros cúbicos de entranhas de terra e pedras, dilacerando a paisagem em feridas abertas, sem tempo de regeneração. Não é novo que as barragens favorecem a libertação de substâncias tóxicas para a água, ao promoverem altos níveis de nutrientes, como fosfatos e nitratos, assim como a consequente acumulação de matéria orgânica em decomposição, e a depleção do oxigénio dissolvido. Estes processos tóxicos contribuem para a retenção de sedimentos e nutrientes deteriorando a qualidade da água e promovendo profundas alterações ao longo do seu curso, degradando e destruindo os habitats que dele dependem, enfraquecendo todo o eco-sistema

Agora o rio soberano e bravo foi silenciado, afogado em si próprio, pois a barragem inundou uma área de cerca de 3660 hectares de território selvagem.

As suas águas e território, antes vivos, distribuem-se agora por três complacentes lagos e em metade do seu percurso a água cobre até 234 metros de profundidade do antigo vale. As margens íngremes quase desapareceram, submergidas numa água sedimentada e domesticada. O vale abrupto e selvagem foi agora amansado a bem da narrativa do progresso tecnológico e da voraz demanda de energia. O lugar mudou, perdendo a sua antiga complexidade, quase extinguindo o seu valioso eco-sistema, mutilando a força e a memória da água brava.

São 70 quilómetros desde a barragem até à foz de um dos seus afluentes, com três grandes lagos, ligados entre si por gargantas e penhascos. O Lago de Cilhades, o maior dos três, com o nome da antiga aldeia da idade do ferro agora submersa. Este grande lago liga-se através da Garganta da Fraga do Fojo ao Lago dos Santuários, que deve o seu nome a uma igreja do século XVIII que aqui existia, edifício transportado, peça a peça do local inundado sendo reconstruido no cimo do monte da Parada (salvou-se o santuário de pedra, mas não o santuário da Vida que não pode ser transportado). Por fim, o Lago dos Santuários liga-se ao terceiro lago, do Medal, pelo estreito do Aguilhão. Com a submersão do território além da perda eco-sistémica, ao nível do património cultural, foram destruídos cerca de 200 pontos de interesse etnográfico, histórico e arqueológico.

Um manifesto público, assinado por mais de 260 investigadores, tentaram evitar esta morte anunciada, alertando para a perda de algo de valor incalculável, investindo no processo como porta-vozes das águas bravas e chegando até às instâncias legais europeias.

Várias associações, ONG’s, investigadores e locais tentaram evitar a destruição e salvar os restos do bosque mediterrânico de azinhais e sobreirais assim como os valiosos núcleos de videira e oliveira-brava. Propuseram-se a defender os lugares de nidificação da águia de Bonelli, da águia-real, do abutre do Egipto, da cegonha-negra, do falcão-peregrino, do bufo-real e do chasco-preto, que perderam também o seu território nativo de caça. Quiseram salvaguardar o corredor ecológico que garantia a comunicação entre vários grupos de espécies fundamentais, tais como o lobo-ibérico, a toupeira-de-água, a lontra, o gato-bravo e o corço, pois antes da barragem os animais conseguiam passar de uma margem para a outra. Uniram esforços para preservar, na zona da barragem, o principal local de desova de uma importante comunidade de peixes da grande área da bacia do Douro. Mas os peixes deixaram de poder percorrer as águas vivas do rio, impedidos de migrar pelos muros de betão. O lúcio chegou também à foz do antigo rio bravo e agora preda os peixes locais, as bogas e os bardos. Em uníssono estas vozes alertaram incansavelmente para a perda de zonas férteis, como vale de Felgar e o seu cultivo de amêndoa e azeite de extrema qualidade, assim como das populações humanas afectadas na zona.

Estas águas são agora plácidas e espelhadas … sim. São águas que trazem a ilusão de segurança e o vício da promessa de desenvolvimento. Mas perdemos o rio e as suas águas vivas, selvagens e revoltas, as águas cavadas já não são donas de si próprias, nem barulhentas ou agitadas.

 

O seu nome é(ra) Sabor.

O perigo das promessas

O sistema ecológico desta qualidade e importância foi destruído com o início da construção da barragem em 2008, com base em algumas promessas, que ignoraram o que já se sabia sobre os malefícios destas construções e dos seus irrecuperáveis impactos ambientais. A perversão é que a barragem do Sabor foi construída com fundamento na necessidade de ajuste da produção de energia para cumprir as metas estabelecidas pelos acordos de Quioto que exigiam a diminuição drástica na emissão de CO2 (cujo prazo nunca foi cumprido).

Condenámos assim um ecossistema ancestral, valioso e único numa ilusão de produção energética “verde”. Uma vez mais ignorando que a crise climática é sistemicamente complexa e que um dos seus vectores principais é a enorme perda de biodiversidade e habitats, o chamado ecocídio.

 

As promessas foram:

 

  • Promessa energética – insuficiente para garantir apoios financeiros comunitários. O contributo da Barragem do Sabor, representa apenas 0,17% do total de emissões de CO2 e 0,7% do esforço necessário (0,15 Mton das 21 Mton CO2 que segundo o Plano Nacional de Alterações Climáticas seria necessário reduzir) para atingir as metas do Protocolo de Quioto, e 0,6% da energia consumida, assumindo-se como insignificante a nível nacional, face aos seus elevados custos financeiros e ambientais. Além disso, as barragens têm um tempo de vida útil muito reduzido, normalmente entre 50 e 70 anos, tornando-se a sua posterior manutenção muito cara e o desmantelamento extremamente complicado e com custos associados elevadíssimos.
  • “Redução” da emissão de CO2 – segundo o site oficial da barragem são evitadas/ano – 1.037 kt emissões evitadas (directas e indirectas). Mas nunca se contabilizou a potencialidade da vasta área florestal da zona ou a abundância de CO2 e metano libertado pela albufeira (tal ocorre em todas as albufeiras devido à degradação de matéria orgânica em anaerobiose), nem a utilização de milhares de toneladas de cimento, cuja produção implica a emissão de uma grande quantidade de CO2 (cerca de 1,25 ton. de CO2 por cada tonelada de cimento produzida).
  • Reserva estratégica de água – para fins de regadio e turismo, numa demonstração grave de ignorância sobre as limitações biofísicas e sócio-demográficos da região, como referido por alguns autores. O regadio a utilizar a água desta albufeira, situada num vale extremamente profundo e isolado que não viabiliza a construção de um sistema de transporte de água, pelo que a água armazenada se limita à produção de energia. A utilização da albufeira para fins turístico-reacreativos está fortemente condicionada pelos grandes desníveis do armazenamento da água, além do terreno sem vegetação e coberto de lodo e a acentuada degradação da qualidade da água devido aos elevados períodos de armazenamento numa zona onde se atingem temperaturas muito elevadas (o que cria um enorme limite na sua utilização para fins balneares, bem como as restrições inerentes ao seu estatuto de ZPE impedem a práticas de desportos náuticos motorizados). 
  • Desenvolvimento regional e “conservação da natureza” – Trás-os-Montes é uma das regiões de Portugal e da Europa com maior densidade de barragens e, no entanto, permanece uma das menos “desenvolvidas”. A construção da barragem do Baixo Sabor significa a destruição irreversível de culturas prioritárias e locais, como no vale de Felgar – uma das zonas mais férteis de toda a área – onde se produzia anualmente cerca de 60.000 litros de azeite de elevada qualidade (0,2º de acidez), promovendo o abandono e deterioração progressiva dos territórios rurais. 

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Seis anos após a inauguração da barragem do rio Sabor, ganharam algumas entidades de produção de marcas de vinho e as câmaras locais uniram-se para criar uma rede de turismo sustentável da área dos “grandes lagos”, ainda sem licenças para usufruir das águas plácidas que espelham o céu. Ganhou quem a construiu, numa “grande” proeza de engenharia e técnica. O turismo gentrificado ganhou em selfies e baloiços paisagísticos.

Perdemos todos em biodiversidade e valor intrínseco do território e da preservação da valiosa vida. A vida que nos escorre entre os dedos a cada ideia “verde” de curto prazo.

Imaginei muitas vezes visitar o rio selvagem. Nunca o consegui fazer. Apesar de não o ter tocado, ouvi-o e ainda estou de luto por o termos perdido, o último na península ibérica, pois continuamos sem noção do quanto da nossa alma, corpo e psique são também mutilados e superficializados nestas violentas conquistas tecnológicas. Apesar disso sei que, por enquanto, a água livre sai ainda da nascente a 1600 metros de altura, atrevendo-se a percorrer o mesmo caminho sulcado em toda a sua força e sabedoria.

 

Recursos e Referências:

  • https://www.cimpor.com/-/aproveitamento-hidroeletrico-do-baixo-sabor
  • http://ambio.blogspot.com/2004/06/especial-sabor.html
    1 – Factos sobre o Sabor por Bárbara Fráguas, José Teixeira e Carlos Aguiar
    2 – Pelo Rio Sabor por Helena Freitas
    3 – Sabor Amargo por Rui Moreira
    4 – Custos de oportunidade: quem os paga? por Manuel Cardoso
  • https://quilometrosquecontam.com/rio-sabor/
  • http://ciara-baixosabor.pt/
  • A Plataforma Sabor Livre foi constituída Quercus, LPN, Fapas, GEOTA, Olho Vivo e SPEA, que se uniram para salvaguarda do rio Sabor sem barragens. Este movimento conta ainda com o apoio de: Environmental Defense e ADEGA, Adenex, ADP Mértola, Água Triangular, ALDEIA, Almargem, Amigos da Montanha, Amigos do Mar, ANATA, A Rocha, Associação Vento Norte, Campo Aberto, CEAI, CEEA, Clube Celtas do Minho, Coagret, Corema, Crepúsculos, Ecologistas en Acción, Euronatura, Federation of Environmental and Ecological Organizations of Cyprus, FAPAS (España), FEG, GAIA, Grupo Flamingo, IRN, Melgaço Radical, Molima, NEPA-AAUTAD, Nuceartes, Oikos, Projecto Palhota Viva. À qual também se juntaram posteriormente o Instituto de Conservação da Natureza (ICN) e o IPA (Instituto Português de Arqueologia).

 

Após milhões de anos de vida vibrante, e depois da primeira ideia em 1996, a 30 de junho de 2008 foi adjudicado o silenciamento destas águas, agora aprisionadas por um volume de 1.102.240m3 de betão com um custo total de 569 M€, calando o eco ancestral deste lugar intocado.

Sofia Batalha

Sofia Batalha

Fundadora e Editora da Revista

Mamífera, autora, mulher-mãe, tecelã de perguntas e desmanteladora o capitalismo-global-colonial-tecnológico um dia de cada vez. Desajeitada poetiza de prosas, sem conhecimentos gramaticais. Peregrina pelas paisagens interiores e exteriores, recordando práticas antigas terrestres, em presença radical, escuta activa, ecopsicologia, arte, êxtase, e escrita.
Honor hystera. Re-member. Response-ability. (un)Learn together.


Autora de nove livros e editora da revista online Vento e Água, Comadre conversadeira no podcast Re-membrar os Ossos e em Conversas D'Além Mar. Instagram, Serpentedalua.com, Sofiabatalha.com

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