Ecoespiritualidade
Coluna de Jorge Moreira9 MIN DE LEITURA | Revista 35
Julia Butterfly Hill
A borboleta que viveu numa árvore
Parte I
Enquanto escrevo isto, aos vinte e cinco anos, moro há mais de dois anos numa sequoia antiga, de sessenta metros de altura, localizada na propriedade da Pacific Lumber. Sobrevivi a tempestades, assédio, solidão e dúvida. Vi a magnificência e a devastação de uma das florestas mais antigas da Terra. Vivo numa árvore chamada Luna. Estou a tentar salvar a sua vida[1]. (Julia Butterfly Hill)
O momento histórico que atravessamos é pautado por uma série de eventos profundamente conturbados. Eventos que surgem da ação descuidada ou deliberada de grupos e indivíduos humanos, poderosos, que pela sua ignorância e filáucia conduzem o mundo para agruras humanas e ecológicas. Passamos recentemente por uma crise económica e financeira, os efeitos de uma pandemia ainda ecoam nas nossas vidas, e estamos agora perante uma guerra absurda, com um impacto brutal que vai muito além do sofrimento humano – é necessário também referenciar os inúmeros animais de companhia que foram abandonados, a morte da fauna selvagem, a destruição das florestas e da Natureza em geral, as emissões colossais de gases com efeito de estufa e ainda não estamos a salvo de uma catástrofe nuclear. O que mais virá para se emaranhar nos feedback loops em direção aos tipping points da crise climática e ecológica? Alguns de nós assistimos incrédulos em pleno sec. XXI ao surgimento de novas personagens que realimentam uma história da Humanidade, que de tão negra, envergonha qualquer alma sensível. O ambiente que vivemos é de guerra, seja ela espelhada na competição e na ânsia pelos recursos que movem o mundo contemporâneo, seja ela factual entre humanos ou destes contra a Natureza. Mas, nem tudo é sombrio, já que existem seres humanos cuja existência pautada por ações pacíficas em defesa dos outros ou da Natureza ficam registadas na memória luminosa da Humanidade, encorajando-a a tomar direções de utopias exequíveis. Julia Butterfly Hill, com apenas 23 anos, marcou presença na história bela da Humanidade, ao instalar-se em cima de uma sequoia milenar, na qual viveu cerca de dois anos para salvar a floresta ao seu redor.
Julia Lorraine Hill nasceu em 1974, no Mount Vernon, Missouri, mas passou a sua infância a viajar numa caravana com a família, já que o pai era pastor evangélico itinerante. Nessas viagens, Hill gostava de brincar nos bosques e rios por onde passava. Eram também as suas salas de aula, já que a sua condição de eterna viajante não permitia ir à escola e eram os pais responsáveis pelo seu ensino. Aos seis anos, durante uma caminhada familiar, algo fascinante ocorreu – uma borboleta-monarca pousou no dedo de Hill e ali permaneceu durante todo o trajeto. Os irmãos nem queriam acreditar. Este evento marcou indelevelmente Hill, que decidiu a partir daquele momento usar a palavra Butterfly, em português, ‘Borboleta’, como apelido para o resto da sua vida[2].
Em 1996, Julia Butterfly Hill sofreu um terrível acidente de automóvel. Foi preciso um ano de terapia intensa, em grande parte alternativa, para que o seu cérebro recuperasse informação, memória e capacidades motoras[3]. O seu estado levou-a a questionar-se sobre a sua recuperação integral e, acima de tudo, sobre o propósito da (sua) vida. Hill estava a viver um momento de grande transformação. A direção que iria enveredar pode ter sido influenciada pelo ambiente da sua infância; por causa dos danos que sofreu no hemisfério esquerdo do seu cérebro, mais racional, mais analítico, deixando a criatividade e a intuição fluir de forma mais expressiva nesse seu momento singular; talvez por ter vivido um evento existencial, devido ao acidente, ou quiçá, devido à fé familiar. O mais provável é que tenha sido um cocktail de todos estes elementos. Diz Hill,
decidi mudar a minha vida e queria seguir um caminho mais espiritual. Se voltasse a estar inteira — isto é, corpo, mente e espírito — teria de descobrir onde deveria estar e o que precisava fazer. Deitada na cama, ainda sob os cuidados de muitos médicos, decidi que, quando estivesse bem o suficiente, faria uma viagem ao redor do mundo. Visitaria lugares que tivessem raízes espirituais profundas. Nessas raízes, nessa linha comum de espiritualidade, senti que iria encontrar o meu propósito[4].
Parece que a borboleta não tinha surgido por um acaso na sua vida. Afigurava-se um prenúncio, um sinal, um potencial ou uma ressonância de que algo maior estaria para vir! A metamorfose é talvez a metáfora que representa bem o momento pós-traumático de Hill, já que ela sai renascida dele. Afinal uma simples lagarta, rastejante, pode-se transmutar numa borboleta, um belo ser alado que enche de magia o mundo e encanta a vida humana. A metamorfose é também uma excelente imagem do despertar espiritual. Não terá sido isso que aconteceu? As palavras de Hill são bem claras:
De repente, vi tudo sob uma nova luz. Todo o tempo e espaço que tinha dado como garantido tornara-se precioso. Percebi que tinha estado sempre a olhar em frente e a planear em vez de me certificar que cada momento conta para alguma coisa. Também percebi que se não tivesse saído da maneira que saí, teria ficado muito dececionada com o vazio da minha existência[5].
Mal os tratamentos terminaram, Julia Butterfly Hill estava pronta para abraçar a sua nova vida e a demanda pelo seu propósito, mas questionava-se por onde começar. Em apenas 15 dias, uns vizinhos de Hill contaram-lhe que iam partir numa viagem à Costa Oeste dos Estados Unidos, levariam também um cãozito com eles, mas precisavam de uma quarta pessoa, para ajudar a pagar o combustível e perguntaram-lhe se queria ir. A questão surgiu na hora certa e encheu Hill de felicidade. Não era o mundo, mas era um começo. O grupo ambicionava ver as florestas tropicais olímpicas de Washington, contudo, durante a viagem, encontraram-se fortuitamente com um estranho, que os incentivou a visitar a Costa Perdida do condado de Humboldt e as florestas de lá. O grupo decidiu acatar a sugestão. Quando pararam no Grizzly Creek State Park, para contemplarem as sequoias gigantes da Califórnia, perceberam que não era permitida a entrada de animais de companhia no percurso e o grupo decidiu admirar as árvores através da estrada. Mas, havia algo na floresta que chamava por Hill e esta, inquieta, informa o grupo que precisava mesmo entrar na floresta, e que se não aparecesse em breves minutes, que seguissem viagem sem ela[6]. Quando Julia Butterfly Hill entrou na floresta começou a senti uma energia estimulante e começou a correr. À medida que entrava no seio da floresta, as sequoias tornavam-se maiores e mais espessas. A dada altura o ar que inspirava era de uma pureza doce e já não sentia o som do frenesim dos automóveis. Ao fim de uns 800 metros, a beleza era de tal grandeza que desacelerou para contemplar. Perante si estava um cenário de árvores gigantescas, que mal se via o cocuruto. À sua volta, imensos líquenes, musgos e cogumelos em tons de arco-íris se encontravam embebidos numa neblina húmida sobre um solo fofo e rico.
Pela primeira vez, senti realmente como era estar viva, sentir a conexão de toda a vida e a sua verdade inerente – não a verdade que nos é ensinada pelos chamados cientistas, políticos ou outros seres humanos, mas a verdade que existe dentro da Criação.
A energia atingiu-me como uma onda. Agarrada pelo espírito da floresta, caí de joelhos e comecei a soluçar. Afundei os meus dedos na camada de substrato, que cheirava tão docemente, tão rica e tão cheia de camadas de vida, então deitei o meu rosto e respirei. Cercada por essas enormes, essas gigantes antigas, (…) nessa majestosa catedral podia sentir todo o meu ser a explodir para uma nova vida. Sentei e chorei por um longo tempo. Finalmente, as lágrimas se transformaram em alegria e a alegria se transformou em júbilo, e sentei e ri da beleza de tudo isso[7].
Com este insight místico, Julia Butterfly Hill saiu da floresta uma pessoa diferente. Quinze dias depois descobriu que se tivesse andado mais tempo ao longo do caminho, tinha dado de caras com a Pacific Lumber/Maxxam Corporation, empresa que estava a abater aquelas árvores milenares. Quando Hill soube, foi como se uma parte de si fosse dilacerada. Não podia acreditar que aqueles templos sagrados, que para si abrigavam mais espiritualidade que qualquer igreja, estavam a ser arrasados e decidiu que tinha de fazer qualquer coisa para os salvar. Todavia, a sua mente assistia ainda a algumas dúvidas sobre a veracidade da sua experiência mística. Por esse motivo decidiu voltar à Costa Perdida com uma nova técnica – orar por orientação. Dirigiu-se a um local onde já tinha sentido uma sensação mágica profunda. Era um local baixo, junto a um riacho que fluía da Cordilheira do Rei para o oceano. Hill Sentou-se e começou a orar, pedido orientação para se tornar a melhor pessoa possível, aprender o necessário para crescer e, o mais difícil, segundo ela, para deixar ir, no sentido do desapego.
Ó Espírito Universal, eu queria dar a volta ao mundo. Tenho vontade de viajar desde que me lembro. Finalmente tenho a chance, mas, de repente, sinto-me compelida a não ir. Por favor, mostre-me o caminho. Se realmente devo voltar aqui e lutar por essas florestas, ajude-me por favor a saber o que devo fazer e use-me como recetáculo[8].
Ao fim de algum tempo, quieta, Hill foi invadida pela tranquilidade, abandonou a ideia de viajar e sentiu que a sua missão seria a de tentar salvar a floresta. Levantou-se, começou a andar e deparou-se com um cristal de ametista, a sua pedra de nascimento. Para Hill, isto não era uma pura coincidência, mas uma aprovação dos espíritos à sua missão.
Referências Bibliográficas:
Brazil, E. (1998). Article. San Francisco Examiner, 12 Februar, A1.
Fitzgerald, D. (2002). Julia Butterfly Hill: Saving the Redwoods. Lerner Publications.
Hill, J. B. (2001). The legacy of Luna: the story of a tree, a woman, and the struggle to save the redwoods. HarperCollins e-books.
Hill, J. B. (2022). Poema: Arco-íris. Facebook. https://www.facebook.com/JuliaButterflyHillOfficial/posts/5330009617032780
- [1] (Hill, 2001, Chapter 1)
- [2] (Fitzgerald, 2002)
- [3] (Hill, 2001)
- [4] (Hill, 2001, Chapter 1)
- [5] Ibid
- [6] (Hill, 2001)
- [7] (Hill, 2001, Chapter 1)
- [8] ibid
A questão surgiu na hora certa e encheu Hill de felicidade. Não era o mundo, mas era um começo.
Jorge Moreira
Ambientalista e Investigador
Licenciado em Ciências do Ambiente, Minor em Conservação do Património Natural, mestre em Cidadania Ambiental e Participação, pela Universidade Aberta, e Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É bolseiro FCT e investigador do Centre for Functional Ecology, Science for People & the Planet da Universidade de Coimbra.
É vice-presidente da FAPAS - Associação Ambientalista para a Conservação da Biodiversidade; dirigente da Sociedade de Ética Ambiental, dos movimentos cívicos Alvorecer Florestal e Aliança pela Floresta Autóctone.
É autor de vários artigos dedicados ao ambiente e voluntário em inúmeras ações de defesa, conservação, promoção e recuperação do património natural.
Tem desenvolvido investigação nas áreas da Ética Ambiental, Educação Ambiental, Sustentabilidade, Alterações Climáticas, Ecologia Profunda e Ecologia Espiritual, onde tem realizado conferências e promovido os temas.
shakti@sapo.pt