artigo de catarina fontoura

Filha de Carvão e Ouro Negro

-Um conto de extrativismo e ecologia- 

4 MIN DE LEITURA | Revista 35

Talvez se possa dizer, que em todas as linhagens humanas agora em existência, o extrativismo se pode encontrar, de tal forma emaranhado nas vidas dos nossos antepassados, que numa miríade de formas esta ele agora presente em nós. Proponho uma alternativa ao simples ato de repudiar o extrativismo, e os seus parentes, a supremacia branca e a patriarquia: que nos situemos. Que exploremos a forma embrulhada em como estamos situados nestes complexos sistemas, e com curiosidade, abordar onde estão as condições e os limites de possibilidade das nossas ações. Desta forma, podemos vermos como descendentes e cúmplices nos eventos abjetos do mundo e simultaneamente capazes de ação concreta de encontro a futuros justos; irremediavelmente tecidos em ecologias largas e profundas, e seres individuais no nosso próprio direito. Se nos nossos antepassados e parentes não humanos podemos encontrar lições de resiliência e coletivismo, nos nossos antepassados humanos todos podemos encontrar, imaginar e recontar, estórias de contaminação entre o extrativismo e o amor.

Catarina foi viúva aos trinta e um anos, com uma filha, Arménia. As duas carvoeiras, as duas de braços musculadas, os seus corpos moldados pelo carvão. Catarina faladora, Arménia silenciosa e sorridente. Na sua casa, no final no inverno sentavam-se a uma mesa redonda com saias compridas e corpo quente da braseira no seu meio e enquanto planeavam o caiar da casa ou falavam do casamento de uma prima, comiam sopas de pão com poejo e queijo de ovelha.

O poejo (mentha pulegium) que quando elas andavam no montado soltava o seu aroma debaixo a cada um dos seus passos e as chamava: ‘Não se esqueçam do que esta por debaixo de vós. Como vossos antepassados, sustentamos-vos nos vossos pés e ao fazê-lo enviamos perfume para que saibam que são amadas.’

A vida delas era a volta do carvão. Plantas tropicais e depois a turfa, antepassados mais antigos, mudados sob nova forma, com tempo, pressão e calor, em carvão, que descendentes humanos, homens e ninos nortenhos extraiam do meio montanhoso e mandavam para Sul, onde há pão, mas não há carvão, e onde Catarina e Arménia o distribuíam dentro das muralhas de Évora.

Quando Arménia tinha ainda idade de dormir sestas na despesa da loja em cima dos sacos velhos do carvão, feitos de juta (Corchorus capsularis) semeada e colhida por corpos escravizados no Brasil, ela acordou ao som da voz da sua prima Adelaide, a sua melhor amiga e companheira, cúmplices de exploração e intelecto. Nesse dia, a atmosfera sentia-se diferente, Adelaide e os seus dois irmãos vinham quietos e carregados, cada um com seu saco. O pai morreu em delírio tuberculoso, foi ter com a mãe já enterrada a muitos anos, e os três acordaram órfãos nessa manhã primaveril.

A Catarina recebeu então mais três crianças para criar e cuidar, tal como se as tivesse parido sem debater com a realidade e sem trocar de vestido, porque já só vestia preto, do carvão.

Depois de uma missa em que se cantou a Jesus com particular fervor, o padre João, despede-se algumas pessoas mais rápido do que lhe e habitual e apressa-se para casa de sua mãe, porque a sua irmã mais nova de catorze anos, acordara sem cabelo. Naturalmente o médico foi chamado, mas muita reza de terços selvagens já teria sido administrada pela avó Adosinda antes da sua chegada – porque lembrai-vos que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que já lhe pediram socorro, fossem pela senhora do cosmos, desamparados. O médico receitou banhos de imersão de umas duas horas de cada vez e João foi mandado ao Rio Caniçó em busca de água que desde tempos imemoriais era a curandeira daquele lugar. E assim o fez, dedicadamente e amorosamente, enquanto o cabelo preto de Adelina crescia, lentamente como o musgo das pedras dos montes.

João, um jovem pároco de Montalegre, tinha pegado numa vasta congregação mineira em Trás-os-Montes, tendendo as almas e mentes daqueles que pelas suas mãos mostravam ao ouro negro, o volfrâmio, luz que nunca tinha visto, vindo de dentro das montanhas do Barroso. E diluíam no Caniçó, cobre, mercúrio e arsénico, transformando a cura em veneno. Entravam pelo boqueirão da mina, homens, alguns sem pelo na cara, em busca de riquezas e melhorias de vida. Em troca, muitos davam aos empresários franceses, exploradores daquelas minas, as suas vidas, carregados de silicose, em meros meses, ainda antes do ano trazer castanhas. Castanhas essas, que aquando da morte do ganha-pão da família, matavam a fome, em sopas e folares.

E esse ano, como todos os outros anos antes desse, trouxe castanhas, com as suas camisas e casacos, sem remendos, nem buracos, dizendo: ‘lembrem-se que, como nós, também os humanos nascem acolhidos e protegidos, não por cascas e picos, mas por mães e avós’.
O alto castanheiro (Castanea sativa), que era sombra amiga no calor de Agosto e alimento invernal, ali estava, ‘pão da bondade e flor da beleza’, como escrevia Albano Saraiva por esses tempos, teria sido propagado na Europa pelos romanos. A cada ecossistema único que providenciava, a cada castanha comida, a cada folha em chá e a cada descanso fresco de ovelhas e pastores, lhes ensinava: para cada projeto de domínio e opressão impiedosa, há milhares de frutos a trabalhar insidiosamente e silenciosamente para milhares de outras direcções.

A Catarina recebeu então mais três crianças para criar e cuidar, tal como se as tivesse parido sem debater com a realidade e sem trocar de vestido, porque já só vestia preto, do carvão.

Catarina Fontoura

Catarina Fontoura

Artista e Investigadora

Professora e Aprendiz Universitária, 

Facilitadora de Criatividade Regenerativa em serviço da adubagem e compostagem de seres humanos no processo de criar arte, solicitando a coletividade, narrativa e posicionamento em ecologias e sistemas terrestres. 

Insta: @catarinafontoura