artigo de sofia batalha

Mudança de percepção sobre o nosso lugar na teia das coisas

5 MIN DE LEITURA | Revista 34

Tem a ver com a capacidade que temos de ler o nosso próprio contexto e de o viver, pois, a mudança de percepção não é passiva ou teórica. Para isso temos de nos cuidar a vários níveis, não só da na dignidade sagrada de cada um, mas também na soberania individual.

O Convite

Este é um convite a uma mudança de percepção sobre o nosso lugar na teia das coisas, tem que ver com o eco de onde estamos e somos, o que quer que isso queira dizer para cada um de nós. Tem a ver com a capacidade que temos de ler o nosso próprio contexto e de o viver, pois, a mudança de percepção não é passiva ou teórica. Para isso temos de nos cuidar a vários níveis, não só da na dignidade sagrada de cada um, mas também na soberania individual. Num convite de mudança de percepção não há obrigatoriedades, mas há que cuidar de não adentrarmos no “extractivismo cognitivo”, pela forma normalizada de como procuramos tirar conclusões altamente higienizadas, sem rugas, paradoxos ou desvios. Esta não é uma proposta de receitas abstractas, não falamos de regras fechadas, mas de um lugar de abertura ao paradoxo, o que significa não querer resolver, ou não ter de optar por um lado, ou outro. Este é um convite para nutrir o caos, o que assim à partida parece uma coisa assustadora, pois o caos não é organizado nem linear. No entanto, é extremamente criativo e um portal imenso onde submerge muita informação e donde emergem paisagens tanto antigas como novas.

Então não esperem deste convite um receituário do que é certo ou errado, do que é bom ou mau, porque tudo isso depende sempre do contexto.

Existe esta ideia, completamente disseminada em termos culturais, que temos que pertencer aos modelos: alguém cria um modelo algures, que pelo contexto que enformou toda a subtileza da sua criação, tem determinadas regras e limitações. E, de repente, encontramos este modelo abstracto – retirado do seu contexto e colocado na caixa do universal – que nos faz algum sentido e tentamos adaptar toda a nossa vida em função desse modelo, muitas vezes exilando ou mutilando o que não nele caiba. Contudo, um modelo descontextualizado não é vivo e raramente é dinâmico, por isso, nesta proposta nunca vos peço para mutilarem a vossa vida ou exilarem partes da vossa experiência para pertencerem a algum modelo.

O foco deste convite é o resgate e re-descoberta da vossa própria linguagem de pertença e vínculo. No fundo, o valor sagrado da própria vida em diálogo e relação, sendo muito mais importante do que qualquer modelo universalista. 

Para tal precisamos de manter o espaço cheio de potencialidades e selvagem, mantendo a identidade em aberto, confiando no corpo, no pulsar do coração, na profundidade do olhar e na integridade da presença. Dou-vos então as boas-vindas a todo o ser, ao corpo por inteiro, às dores, alegrias, potencialidades, a todas as frustrações, a todos os lutos, a todas as felicidades, a toda a história, a todas as latências, expectativas, amores, a todos os diálogos, a todos os lugares que vos compõem, ao que julgam serem e ao que não sabem que são, aos pesos que carregam, às densidades que ao vos prendem. Aos labirintos que nos libertam. Este convite tem espaço para tudo isso, para a sombra e para a luz. 

Não podemos nunca viver os lugares de outra forma que não seja paradoxal, esta é a sabedoria primal da nossa rica percepção selvagem.

Trazemos a esta paisagem dos limiares a Chronos, o tempo métrico e calendarizado, pois temos horas e rotinas, o que nos ajuda a planear e organizar a vida. Mas quem habita nestes lugares de metamorfose é Kairos, o tempo orgânico e infinito, caleidoscópico e ciclópico, o tempo fractal e sagrado impossível de domesticar, um tempo selvagem que nos expande e contrai, representando a riqueza e profundidade viva de um tempo que não é controlável, útil ou linear. 

Voltemos ao caos, sendo aqui um conceito vivo e mesmo importante porque no traz ao princípio base do arquétipo feminino da sombra. Sendo algo com que as mulheres estariam bem à vontade, pois é a energia básica e fundamental da vida, um conceito cardeal de concepção e morte, do que submerge e emerge. Mas hoje em dia o caos faz-nos comichão nas mãos e principalmente na cabeça, porque nos lança ao que tentamos evitar enquanto cultura: a desorganização e a impermanência. Estamos sempre e constantemente a tentar controlar o caos na nossa vida e, como consequência, perdemos as experiências de transmutação e metamorfose profunda, porque não queremos lá entrar sequer. Estes momentos e oportunidades de vida-morte-renascimento estão presentes em todos os lugares e paisagens. Acontece que o medo do caos é inevitavelmente o medo da morte. Faz parte de convite de mudança de percepção a ideia fundamental de que a morte, num ciclo vital natural, está ao serviço da vida, pois faz parte do sistema intrínseco da vida em perpétua auto-regeneração. A morte deste ponto de vista é a dissolução de fronteiras na porosidade do corpo e identidade, seja na morte física, sazonal, emocional, mental ou espiritual.

Se há algo que as paisagens e natureza nos ensinam é que este movimento sazonal – morte, vida, renascimento – é perpétuo e acontece constantemente, independentemente das necessidades individuais ou egóicas, independentemente se acho bem ou mal.

Na verdade, é totalmente irrelevante aquilo que possamos achar singularmente, porque estes ciclos de vida são muito maiores que qualquer um de nós. Ao trabalhar genuinamente com os lugares trabalhamos em muitas dimensões, as visíveis e invisíveis, as reais e as imaginárias. 

A Ecologia e os Lugares

Ecologia é uma palavra que hoje em dia é muito usada e relaciona-se directamente com o conceito de interdependência. Sabemos isso de um ponto de vista lógico ou cognitivo, sabemos que somos completamente interdependentes a tudo. Mas temos dificuldade em concretizar esta interdependência viva na percepção profunda. Temos dificuldade em perceber as fronteiras dessa interdependência, que não existem, mas que gostaríamos que existissem. É fácil de perceber no exemplo de um apartamento quando há vizinhos que fazem barulho e incomodam. O convite é que em vez de lutarmos contra o caos possamos abraçá-lo, senti-lo e vê-lo como um portal de transição para a nossa própria sabedoria e maturação.

Nenhum lugar natural, seja uma montanha, uma floresta ou um rio está arrumado segundo a perspetiva ortogonal humana ou limitada às categorias humanas. São lugares completamente interdependentes e caóticos, é o que lhes traz o seu imenso poder que ressoa. 

Gostaria de relembrar que a relação multidimensional entre várias dimensões, tais como: ideias, memórias, sensações, símbolos, histórias e lugares, traz a teia fundamental de significados e conceitos que demonstra a lente, inevitavelmente e limitadamente humana, e cingida à nossa experiência neste corpo e nesta cultura, neste contexto concreto. Esta lente tem latente toda a complexidade e poesia da nossa identidade e relação com os lugares vivos. Na verdade, nunca podemos trabalhar com os lugares sem respeitar a sua soberania, pois não são nossos e nunca limitados à nossa lente, perspetiva ou presença. O que não quer dizer que  a nossa perspetiva ou presença são inválidas, ou negativas, mas de facto os lugares e paisagens sempre foram muito maiores que nós, são eles que nos abraçam.

[continua no próximo número]

Para tal precisamos de manter o espaço cheio de potencialidades e selvagem, mantendo a identidade em aberto, confiando no corpo, no pulsar do coração, na profundidade do olhar e na integridade da presença.

Sofia Batalha

Sofia Batalha

Eco-Mitologia e Ecopsicologia; Fundadora e Editora da Revista

Mamífera, autora, mulher-mãe, tecelã de perguntas e desmanteladora o capitalismo-global-colonial-tecnológico um dia de cada vez. Desajeitada poetiza de prosas, sem conhecimentos gramaticais. Peregrina pelas paisagens interiores e exteriores, recordando práticas antigas terrestres, em presença radical, escuta activa, ecopsicologia, arte, êxtase, e escrita.

Certificada em Ecopsicologia e Mitologia Aplicada pela Pacifica University, nos EUA. Identifico-me como pós-activista, fazendo parte do Advisory Board da The Emergence Network.

*Homenagear hystera. Recordar a capacidade de resposta. (des)aprender em conjunto.

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Autora de 11 livros & 2 (Des)Formações
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