artigo de Fátima Marques
As Linhas de Combate e o Círculo
4 MIN DE LEITURA | Revista 34
A palavra polarização passou a ser ultimamente um lugar comum. Não porque a polarização tenha começado agora. É um lugar comum em tempos de crise e a origem da violência.
Quando algo corre mal o nosso cérebro está programado para procurar o erro e encontrar o culpado. Encontramos o culpado, punimos o culpado e seguimos com as nossas vidas. Há qualquer coisa de compensador e tranquilizante em encontrar uma ordem no mundo onde há heróis e vilões e os vilões perdem sempre, ou quase. E no entanto nunca consigo deixar de pensar que com a punição não termina o luto, muitas vezes nem sequer o atenua. Como os contos de fadas da Disney que acabavam no “Felizes para Sempre”, neste caso acabamos com “Caso encerrado”. O que se passa depois de encontrar o culpado é invisível.
A necessidade de punir também está ligada ao medo de sermos nós os vilões. Se não encontrarmos culpados, podemos ser punidos. Para eu ser totalmente inocente, a fórmula mais fácil é que o outro seja totalmente culpado.
Colectivamente é ainda mais intenso. Não há nada que una mais uma tribo do que ser atacada. Por isso todos os insultos e ser olhado com desdém, contribui grandemente para a adesão a políticas populistas. Ninguém gosta de não se sentir ouvido e que o seu ponto de vista é ridicularizado. Pontos de vista são histórias de vida. Ridicularizar ou tentar humilhar as pessoas com quem não concordamos elimina qualquer possibilidade de que venham a ouvir-nos. Faz com que defendam as suas posições como a vida. Só consigo alargar a minha forma de ver o mundo, se essa nova forma me incluir não como vilão.
Hierarquias de Domínio e Hierarquias de ajuda
Numa Hierarquia de Domínio, o mais poderoso domina o menos poderoso. Alianças são formadas para manter o domínio. Numa cultura baseada numa Hierarquia de Dominio, só há 3 papéis: Vítima, agressor e salvador. A esperança da vítima é tornar-se um agressor. O salvador tenta afastar-se da posição de vítima, e torna-se frequentemente um agressor disfarçado. A hierarquia de domínio é linear, os lugares são estáticos e muitas vezes transgeracionais.
Numa hierarquia de ajuda, a posição “superior” não significa poder mas sim responsabilidade e é baseada na competência. Quem sabe mais ou pode mais, ajuda quem sabe menos ou pode menos. Uma hierarquia de ajuda é circular, há sempre alguém que precisa do que tens e sempre alguém que tem o que precisas. Cada pessoa tem vários lugares em diversas ordens de hierarquia, dependendo das situações.
O desconhecido como risco
Não é verdade que em todas as culturas os estranhos sejam considerados um risco. Prova disso foi a forma como em alguns locais os invasores foram recebidos com curiosidade e interesse. Infelizmente vimos o que aconteceu. Onde não havia experiência prévia de violência ela foi surpreendente.
Noutras culturas a vida depende de saber distinguir um amigo de um inimigo. Há uma série de rituais e sinais para podermos reconhecer quem pertence à tribo. Códigos de linguagem, de vestuário, de comportamento. Um exemplo é todo o sistema de etiqueta associado às classe altas, que faz com que um estranho facilmente seja identificado…
Perante um estranho vamos instantâneamente avaliar se representa ou não um risco. É um aliado ou um oponente? E logo de seguida avaliamos qual é o seu estatuto em relação a nós. Se for aliado numa hierarquia de ajuda, a sua força fortalece-me. Se o identificarmos como oponente, vamos escolher lutar, fugir, congelar ou submeter-nos, consoante nos sintamos acima, em pé de igualdade ou em desvantagem em relação a ele.
Instintos básicos e manipulação
Desde sempre que os poderosos em hierarquias de poder usaram a manipulação e o medo para dominar. Não é uma coisa recente, nem pós-internet. Apenas se tornou mais óbvio.
O paradigma em que vivemos é muito semelhante ao da família disfuncional onde um narcisista reina. Há filhos dourados, bodes expiatórios, macacos voadores e muita manipulação, a mentira é uma ferramenta de poder, assim como a confusão. Assim os filhos fazem o trabalho pelo progenitor narcisista e nunca o colocam em causa.
A manipulação hoje em dia é uma ferramenta super precisa, usada por especialistas, em que quem nos manipula nos conhece melhor do que nos conhecemos a nós próprios. A estratégia base é a mesma, usar os nossos instintos básicos para defletir o que seriam os nossos limites saudáveis, virar os “filhos” uns contra os outros, enquanto os pais ficam livres para agredir.
A minha experiência é que a nossa melhor ferramenta para quebrar o feitiço é sair da tal polaridade de bons e maus e humanizar o oponente e o agressor. Compreender que todos somos produtos muito complexos de tudo o que foram as nossas experiências formativas, a nossa história pessoal, familiar, o local onde nascemos e a época em que vivemos. São essas que formam as nossas estratégias de sobrevivência que são apenas adaptações e não verdadeiramente quem somos. Tanto salvador, como agressor e vítima estão presos nessas estratégias.
Humanizar o agressor
Humanizar quem sentimos como oponente ou agressor é contraintuitivo. Se o humanizarmos temos que o deixar fazer aquilo que quer? Parece significar que o vamos deixar magoar-nos ou/e dominar-nos. É intuitivo desumanizar, assim posso defender-me mais eficazmente do que se tiver compaixão.
Faz sentido em circunstâncias extremas de matar ou morrer, de defender as pessoas que amamos. Mas é esta a situação real de momento quando desumanizamos quem não vê o mundo como nós?
Ao desumanizarmos tornamo-nos o agressor do outro que nos desumanizará de volta.
Fomos educados em Hierarquias de Dominação, numa lógica de certo/errado, ganha/perde. Quem erra ou perde é punido. Não admira que lutemos tanto para estar certos e ganhar.
É importante olhar mais longe e reeducar-nos. Quando nos colocamos em duas linhas, como inimigos, cada um vê o que está nas costas dos outros. As duas linhas vêem coisas completamente opostas. Quando nos colocamos em círculo como aliados, as visões de todos deixam de se opor, mas completam-se. Podemos ouvir as histórias uns dos outros não para responder mas para compreender.
Podemos humanizar quem vemos como agressor, sem compactuar com a agressão, nem nos tornarmos nós agressores. Todos fazemos parte da familia humana e todos somos portadores de sintomas. Podemos validar o que sente quem agride, sem validar o que faz. Podemos enraizar-nos na profunda compaixão de saber que quem agride tem medo, e que todos nos podemos tornar agressores nas circunstâncias certas. Dentro dos agressores, dos bullies há uma parte apavorada que deixou de acreditar em amor e nunca se sente em segurança: Onde não há o poder do amor, resta o amor ao poder.
Compaixão radical e limites radicais, não são opostos, são duas partes do mesmo círculo. Pelos outros e por nós. Façamos amizade com o nosso agressor interior primeiro… 🙂
Recursos
https://www.psychologytoday.com/us/blog/after-service/201803/the-real-reason-people-punish-others
Arno Gruen – Falsos Deuses
Jean Shinoda Bolen – O anel do poder
Dentro dos agressores, dos bullies há uma parte apavorada que deixou de acreditar em amor e nunca se sente em segurança: Onde não há o poder do amor, resta o amor ao poder.
Fátima Marques
Fundadora dos projetos Co.mover.se e Saúde Para Todos.
Acredita no potencial curativo
de trazer à luz as dinâmicas
ocultas dos relacionamentos, e
na transformação dos ciclos de
violência em ciclos de empatia.
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