Mitologia Criativa
Coluna de Élia Gonçalves3 MIN DE LEITURA | Revista 34
A Forja de Hefesto
– o processo de Soul-Making –
“Alguém que eu amava deu-me, uma vez, uma caixa cheia de escuridão. Demorei anos a entender que, também isto, foi um presente.”
Mary Oliver
Hefestos é talvez um dos deuses mais paradoxais do Olimpo arquetípico. Filho de Hera – em grande parte das versões nasce por partogénese – tem uma aparência que destoa da beleza habitual dos outros deuses. Vem com um defeito num dos pés e um rosto grotesco. Esta diferença tão chocante fá-lo ser rejeitado pela mãe e atirado do alto do Olimpo até às profundezas do Oceano, garantindo-lhe, para além dos defeitos de nascença, uma série de outras cicatrizes.
Acaba por ser encontrado por Tétis, após nove dias e nove noites, que o cria na ilha de Lemnos, uma ilha vulcânica repleta de cavernas, numa das quais ele cresce. É aqui, por entre a rocha e o fogo, numa ilha que canta às vísceras da Terra, que Hefestos desenvolve o seu talento e constrói a sua forja.
Já adulto, consegue um lugar entre os deuses do Olimpo e casa com Afrodite, em algumas versões por exigência sua, noutras, por exigência de Hera numa tentativa de insultar a deusa da beleza. A bela Afrodite não o contestou e há quem diga, até, que ela o escolheu. Pois que um artista não cria sem a musa, nem a musa sobrevive sem a arte que ela inspira. Existem, no entanto, outras versões nas quais Hefestos seria consorte de Charis (a Graça), também ela um lugar de inspiração intensa.
Torna-se, desta forma, o ferreiro do Olimpo e os mais importantes artefactos dos deuses surgem pelas suas mãos, tais como o carro de Apolo, os arcos e flechas usados por Apolo e Artémis ou o cetro de Zeus, entre muitas outras armas e joias de valor e beleza inestimáveis. Não sendo um deus que tenha popularidade ou apreço por parte dos outros deuses, ele ganha respeito através do seu trabalho, mostrando que não é a perfeição que produz arte, ou beleza.
Hefestos é o deus imperfeito, o que carrega as feridas, o excluído. E, no entanto, é também o criador, o artesão, o senhor da forja, do trabalho e da criatividade, o mestre do fogo e dos metais. Ele tem acesso ao magma da própria terra e com ela opera o trabalho alquímico no fogo que vem das entranhas e das profundezas. O seu lugar é escondido, silencioso, tal como a caverna da forja, um lugar vulcânico, fechado e secreto. Envolve trabalho, esforço, paciência e maleabilidade.
A imperfeição de Hefestos, as suas feridas e cicatrizes tornam-se o chão onde algo novo se constrói. A perfeição não cria, não molda, não cresce. Só o imperfeito, o que carece e tem espaços vazios pode almejar à busca, à transformação, ao florescimento.
O deus da forja ensina-nos, então, a utilizar as feridas como húmus para o que em nós quer ser criado. Ele sai do paradigma ocidental da dualidade, da cura ou da erradicação do que não é belo, para o trabalho de alma.
Este é um processo de interiorização, no qual tudo é matéria bruta a pedir para ser lapidada. É esse o lugar do artesão. Perceber o mundo, as estórias pessoais e o que nos coube viver como uma fonte inesgotável de criação. Pode não ser valorizado porque não é glamoroso. É necessário o submundo, o tempo, a solidão e a presença, a compaixão e o trabalho árduo para forjar a partir do fogo da alma, pegar nas estórias, feridas e memórias e permitirmo-nos trabalhar numa forma. Não há um lugar de superação no processo da forja. Ela pede-nos somente, mas implacavelmente, a expressão mais real e presente de quem somos. Necessita das mãos, do labor, o lugar que em nós serve de ponte entre a alma e o mundo. E o ato de lavar, dobrar, cozinhar, pintar, escrever, tecer, esculpir e transformar o que é dor em matéria – imagem é o puro potencial da forja de Hefestos.
É também essa a essência do chamado trabalho da sombra. O desconhecido em nós, aquilo que rejeitamos e excluímos – por não aceitarmos o imperfeito, ou por puro desconhecimento – é, como Hefestos, atirado da luminosidade do Olimpo e dos Deuses (ou arquétipos) em nós para as profundezas do inconsciente, onde não é visto, mas entra em contacto com o fogo selvagem da própria alma, o lugar psíquico de nos forjarmos a nós mesmos. A sombra é, por isso, a matéria-prima, o potencial que pede para ser moldado, reconhecido e manuseado. É nas profundezas que reside o caldeirão alquímico onde podemos transmutar emoções em criações. Forjamo-nos pela capacidade de ser tocados pela vida, de pegar nas nossas circunstâncias e manuseá-las no âmago da existência. Transformar a dor em dom, trazendo vida e beleza ao que, aparentemente, parecia grotesco e defeituoso.
Somos sempre o material mais extraordinário a partir do qual nos construímos. Nas palavras de James Hillman, este é o grande processo de soulmaking (fazendo alma).
Não há um lugar de superação no processo da forja. Ela pede-nos somente, mas implacavelmente, a expressão mais real e presente de quem somos.
Élia Gonçalves
Colunista e Autora regular da Revista
Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal
Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa
Autora do Mito de Ophídia
elia.gonçalves@escolatranspessoal.com