Entrelaçamentos Inegáveis

Coluna de Telma G. Laurentino

3 MIN DE LEITURA | Revista 54

Deslinearizar pertença, Desinvisibilizar relação

Uma proposta de observação eco-evolutiva da árvore da vida e das teias a sustêm

 

Pergunto aos meus pequenos alunos de ecologia sistémica:

“Então, o humano é diferente de todas as outras espécies ou não, pertence à natureza como todas as outras espécies?”

Imediatamente, sem qualquer hesitação, soa um “Não.” coral que contrasta não só com a pausa que habitualmente tomam para refletir sobre a pergunta, mas também com a discordância típica das respostas criativas infantojuvenis. 

Fiquei simultaneamente surpreendida e não espantada. “e porque acham isso?

“Porque os humanos destroem o planeta e destroem outras espécies, e as outras espécies não fazem isso!” diz o de 11 anos,

Sim, e também porque somos mais evoluídos que outras espécies, não é?” diz a de 14 anos.

Ah! aqui, ecoada perfeitamente por dois pequenos humanos, o dualismo hierárquico da epistemologia que todos herdamos quando nascemos em contextos do norte global hiper-urbanizado: o humano ou é “pior” ou “melhor” que todo o restante mundo natural. Segundo este paradigma cultural, nunca pertencemos. A humanidade é sempre diferente por ser menos capaz de viver sustentavelmente que outras espécies; ou por ser hierarquicamente superior de alguma forma orgânica ou tecnológica.

Ouvimos milhares de ecos desta convicção nas muitas esferas epistemológicas que nos habitam, muitas vezes simultaneamente. Nos círculos ativistas podemos ser “vírus” e “praga”, mas também a única fonte de conhecimento para as soluções reparadoras da crise climática. Dos fundos do terrorismo ecológico planeia-se a exterminação da “praga humana”, e das alturas transcendentais do solipsismo celebra-se o individuo humano como sagrado “tudo.”

O que pode aparentemente soar a duas perspetivas opostas do papel ecossitémico da humanidade, na verdade, tem raiz comum nas ideias de que: ser humano faz-se de uma só forma (a que conhecemos através de nós mesmos) e é separado hierarquicamente de todos os outros.

Nisto, perdemo-nos em discussões de merecimento de pertença ecossistémica, quebramo-nos em comunidades que celebram, em hiperindividualismo, a nossa pertença incondicional à beleza da Terra, e noutras que seguram o pesar coletivo da pertença à injuria da Terra.

Neste pêndulo imperial entre o binário bom/mau, de dentro dos nossos contextos hiper-urbanizados (quem “foge” para o rural não “foge” da cultura techno-colonialista enraizada em si) esquecemos, ignoramos (ou deificamos inapropriadamente) as muitas formas humanas conhecidas de viver sustentavelmente, em reciprocidade responsável com a Terra. Povos e conhecimentos indígenas onde a cultura não se enraíza na separação do humano, mas no reconhecimento do entrelaçamento profundo da sua sobrevivência com a sobrevivência das florestas, dos desertos, das tundras e das costas que habitam.

O que sabemos sobre pertença ecossistémica?

Estes conhecimentos existem também dentro dos contextos hiper-urbanizados, há sempre populações, técnicas, artesanatos, calendários, dados científicos que registam claramente a interdependência profunda da ecologia humana com o ecossistema envolvente.

Dentro dos contextos hiper-urbanizados é onde a urgência do resgate da pertença humana tanto à beleza como à injuria da Terra encontra solo fértil para transformar o paradigma estagnado da separação.

Sem nos apropriarmos violentamente das culturas de outrém, temos conhecimentos tradicionais e científicos que nos contam dos inter-meios sinuosos, porosos, viscosos, que habitamos para alem dos extremos puristas e violentos.

Naquele dia, às certezas rápidas dos meus alunos, respondi com perguntas que vamos trabalhando ao longo do tempo:

“Será que a Amazónia seria tão biodiversa sem os humanos que lá vivem há milhares de anos? Será que os humanos só contribuem para a destruição da Terra, ou são também biodiversidade através das relações que têm com outras espécies?”

“Será que os humanos evoluíram mais, ou evoluíram de forma diferente de outras espécies?”

A ecologia, a biologia evolutiva e a biologia do desenvolvimento trazem-nos alguns dados transdisciplinares importantes na reflecção sobre estas perguntas tão relevantes socio-ecologicamente. 

A natureza eternamente preliminar da ciência (e de todo o conhecimento humano) não permitirá respostas absolutas para que nelas possamos ancorar paradigmas binários podres. No entanto, das dúvidas coletivas ecoadas naquelas questões-resposta têm emergido dados que racham os solos estéreis separatistas em que crescemos, onde a deslinearização da pertença, e a desinvisibilização da relação fertilizam a árvore da vida e as teias que ligam cada um dos seus ramos. Humanos incluídos. Como ramo, não como copa ou lenhador.

É exatamente nessa árvore filogenética da vida que vamos iniciar a nossa viagem, no próximo artigo. Iremos começar há 150 anos, quando o paradigma cultural ocidental da posição do humano na natureza levou um abanão severo e irreversível.

A direção que procuramos é a de re-pertencer em responsabilidade e reciprocidade à biodiversidade. Os guias são Vento e Água.

O mapa? são as certezas, e as perguntas que as racham.

Para citar este artigo:

G. LAURENTINO, Telma. Deslinear pertença. Desinvisibilizar relação. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-54/deslinearizar-pertenca-desinvisibilizar-relacao/, número 54, 2024

Dentro dos contextos hiper-urbanizados é onde a urgência do resgate da pertença humana tanto à beleza como à injuria da Terra encontra solo fértil para transformar o paradigma estagnado da separação.

Sem nos apropriarmos violentamente das culturas de outrém, temos conhecimentos tradicionais e científicos que nos contam dos inter-meios sinuosos, porosos, viscosos, que habitamos para alem dos extremos puristas e violentos.

Telma G. Laurentino

Telma G. Laurentino

Bióloga

Educadora
Escritora
Artesã intuitiva
Biodiversidade – Evolução & Genética – SocioEcologia – Educação inclusiva –
Pertença
TelmaGL.com
Telma.laurentino@gmail.com