Onde mora o coração, histórias e paisagens

Coluna de Ana Sevinate

2 MIN DE LEITURA | Revista 54

As Horas: Sobre a Passiflora

 

Há horas para avançar, há horas para recolher. Há horas para amar, há horas para honrar e agradecer. Horas para preparar, horas para enfrentar. E horas só para ficar. E saber ficar na hora, precisa de tempo e quando chegar o momento, esperamos com ele. E sobre a pressa de chegar, falemos mais tarde.

No entretanto, o relógio espampanante engradece a beleza e o humor dos dias. Um chapéu? Um bolo enfeitado? Um sonho acordado? Uma viagem ao país das maravilhas? A mim lembra-se o relógio de parede dos meus avós e a antecipação terna de poder ouvir as suas badaladas, nos tempos da batida do coração.

O prazer, não de ver o tempo passar, mas de, atentamente, o escutar. Pois se o som e o tom das badaladas cantam histórias que todos conhecíamos, cada momento era novo, único e singular.

E é a atenção ao momento e ao ritual que nos traz hoje e aqui. E a atenção a cada botão de uma flor que parece ter o seu tempo. Novo, único e singular. Enquanto uma abre, outra nasce, outra pavoneia-se, outra seca e outra espreita. E, no entanto, todas são uma e uma só. Uma só planta. Sem se inquietarem, respiram o seu tempo e o tempo umas das outras. Trepando, subindo, fazendo o coração do mundo sorrir e palpitar.

A ansiedade pelo que há de vir e a dor tensa do que foi dão lugar ao vislumbre do que é. Chegada a paz aos vínculos e ao espírito, fazem-se as pazes com o ontem e com o amanhã. O passado descansa repousadamente e o futuro aguarda. Pacientemente.

E então, como que por magia, o presente oferece-se a nós como uma flor colorida, irreverente. Visionária, de um outro mundo. Um mundo onde nos libertamos do que já não é e do que nunca há de ser. Um mundo que permite que os outros sejam quem nunca fomos nem nunca seremos. Para dar lugar a um lugar autónomo e, ao mesmo tempo, que se entrelaça no tempo dos outros e o respeita no seu compasso. De espera. Em liberdade. E a um mundo no qual podemos ser quem mais ninguém foi. A cada hora e a cada partícula de segundo.

O sono vem de mansinho, tirando-nos do circuito repetido do pensamento preso no passado e no futuro. O que se repete agora é a batida embalada do coração. Do mundo. E cada coração vai batendo, sozinho, mas todos vão cantarolando, em uníssono, melodias. Sobre um mundo novo onde as horas são as de chegar, sem medo de se chegar tarde. Onde as horas são as de apaziguar, libertando-nos do totalitarismo de um tempo homogéneo e desumanamente exigente, que não é o de ninguém. Onde as horas são as de reclamar o tempo que ainda temos.

E a dor do corpo encontra poiso. No presente. E o contrarrelógio torna-se a resistência tão necessária. E hoje, mesmo que só por hoje, e por uma partícula de segundo, é possível antever a paz de amanhã. E hoje, mesmo que só por hoje, e por uma partícula de segundo, é possível contemplar o passado. Em paz.

Para citar este artigo:

SEVINATE, Ana. As Horas: Sobre a Passiflora. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-54/as-horas-sobre-a-passiflora/, número 54, 2024

O sono vem de mansinho, tirando-nos do circuito repetido do pensamento preso no passado e no futuro. O que se repete agora é a batida embalada do coração. Do mundo. E cada coração vai batendo, sozinho, mas todos vão cantarolando, em uníssono, melodias. Sobre um mundo novo onde as horas são as de chegar, sem medo de se chegar tarde. Onde as horas são as de apaziguar, libertando-nos do totalitarismo de um tempo homogéneo e desumanamente exigente, que não é o de ninguém. Onde as horas são as de reclamar o tempo que ainda temos.

Ana Sevinate

Ana Sevinate

Psicóloga clínica e psicoterapeuta

Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida. 

Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.

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