artigo de Sofia Batalha

O Contexto

nunca foi universal ou abstracto

6 MIN DE LEITURA | Revista 58

Quero com este artigo clarificar a superlativa importância do contexto, pois como refiro em todas as minhas publicações “(…) Escrevo a partir de um contexto de baixa intensidade no norte global, em consciência e responsabilização pelo ecocídio e genocídio da modernidade.”

Não pretendo trazer superficialidade a um tema tão complexo, limitando as populações do Sul Global ao papel inerte de vítimas passivas, apagando toda a sua potência, força, legado, soberania ou dignidade; eclipsando as desigualdades e opressões existentes no contexto do Norte Global; ou ignorando os tiranos narcísicos, sustentados pelo sistema tecno-militar-capitalista de ambos os hemisférios.

Mas trago uma das linhas da necropolítica em que assenta o projecto da modernidade: genericamente, aqui no confortável Norte Global, temos o luxo e privilégio de ter eco-ansiedade, mas noutros locais a devastação e catástrofe ecológica é já muito real. Neste contexto sofremos pelo que deixaremos aos nossos filhos e próximas gerações, se um planeta vivo ou moribundo. Mas noutros locais a dor é no presente, pela incerteza e violência reais: “(…) a eco-ansiedade tornou-se uma crise de saúde mental no mundo ocidental, uma antecipação do seu colapso social. Muitos activistas do clima estão menos conscientes de que a eco-ansiedade vem com o medo de perder os privilégios da civilização ocidental, enquanto outros povos ou civilizações já passaram por alguma forma de colapso devido à história da colonialidade.” (1)

Sei que o mundo arde pela preguiça confortável, margeando o privilégio e ilusão de imunidade de alguns, assim como pela ignorância e apatia voluntária de tantos.

Para os povos indígenas, as alterações climáticas trazem uma camada adicional a uma longa história de sofrimento de muitos tipos de perdas devido à colonização, de genocídio a ecocídio. Muito antes de existirem conceitos para o luto ambiental na modernidade, os povos indígenas já o viviam nesse luto desde a chegada dos colonizadores, que continuam hoje em dia a extrair e destruir os ecossistemas, os não humanos, as plantas e as relações entre as pessoas e todos os parentes.

O Sul Global, além dos territórios sistematicamente oprimidos, extraídos e vulneráveis pelo Norte Global, é onde estas injustiças se fazem mais sentir: “Algumas destas pessoas exprimem a sua cólera, enquanto outras reagem mais com entorpecimento ou humor deprimido às injustiças climáticas, porque já sofrem muito com elas (Jafry 2019)” (2). Quem estuda estas dinâmicas em profundidade “observa que a emoção principal dos activistas do Norte é a culpa, e a dos activistas do Sul é a raiva. (os especialistas) Alertam também para a tendência, sobretudo dos privilegiados, de tentar silenciar a raiva dos oprimidos. [Pihkala, 2024, pp.17, 18]”.

Enlaço o que as autoras do capítulo “A sombra visivelmente invisível — Trabalho de descolonização em movimentos ambientais,” Nontokozo Sabic e Malika Virah-Sawmy, trazem sobre este contexto. As autoras citam Henderson (2019): “As alterações climáticas são o resultado do facto de, as chamadas sociedades “desenvolvidas,” se tornarem social e materialmente mais complexas ao longo do tempo, acumulando vorazmente recursos energéticos das chamadas áreas “em desenvolvimento” tanto do Sul Global como dentro das suas próprias fronteiras. . . . Este foi, e continua a ser, um processo racial, uma vez que os brancos acumulam/riqueza ao desapossarem violentamente outros racializados das suas terras e dos seus recursos. (…) As alterações climáticas são um artefacto da industrialização global através do colonialismo racial, com as nações ricas a acumularem recursos e causando desproporcionadamente a emergência climática (p. 987).

As autoras citam também bell hooks (hooks, 2014, p. 16): “O nosso bem-estar mental depende da nossa capacidade de enfrentar a realidade. Nós só podemos encarar a realidade rompendo com a negação.” Nontokozo e Virah-Sawmy referem ser cada vez mais reconhecido que os movimentos climáticos e ecológicos estão emaranhados com um paradigma que sustenta o Antropocenoo da supremacia branca. As pessoas que são BIPOC (negros, indígenas e pessoas de cor) queixam-se, com razão, de que o movimento climático representa maioritariamente as vozes, ideias e preocupações das pessoas brancas. O debate sobre o clima centra-se nas ameaças aos actuais meios de sustento e segurança no Ocidente, sendo frequentemente esquecido que o sustento e segurança não têm sido distribuídos de forma igual ou mesmo presentes na maior parte do mundo. De facto, as autoras reiteram que, assentam em séculos de injustiças que levaram ao colapso das sociedades do Sul global. A maioria global já viveu o colapso da sociedade, de uma forma ou de outra. A questão é que o racismo, o colonialismo e outras formas de opressão estão profundamente enraizados na situação global das alterações climáticas.

Nontokozo e Virah-Sawmy recordam como a própria psicoterapia — ou, melhor, alguns dos seus aspectos teóricos e práticos — está emaranhada com a supremacia branca, um paradigma que sustenta o Antropoceno. Neste contexto, tratar a eco-ansiedade como um problema do indivíduo    da mesma forma como muitas questões de saúde mental, como a depressão e a dependência, são tratadas    é absurdo. Cada ferida tem o seu contexto. O trabalho de descolonização, referem, relaciona a ferida da eco-ansiedade com o enfrentar a sombra da supremacia branca e opressão em que está enraizada.

Tomo este contexto como o chão fundamental para ancorar as nossas experiências e perspectivas, sempre limitadas e parciais: não é a humanidade que tem de mudar a sua forma de se relacionar, mas a cultura moderna em particular — quem é exactamente esse “nós”, quando se sabe que 71% das emissões climáticas desde 1988 foram produzidas por apenas 100 empresas? Os delitos não são universais, mas específicos deste contexto cultural e da sua forma de pensar e relacionar.

(1) “A sombra visivelmente invisível — Trabalho de descolonização em movimentos ambientais,” Nontokozo Sabic e Malika Virah-Sawmy, pp. 108-114, do livro Climate, Psychology, and Change: Reimagining Psychotherapy in an Era of Global Disruption and Climate Anxiety, editado por Steffi Bednarek.

(2) https://en.unesco.org/inclusivepolicylab/learning/inequality-and-climate-change-how-untangle-injustice

Artigo adaptado de: BATALHA, Sofia. Culpa, Mágoa e Raiva, pp. 195-199, {cadernos de oikos-psykhē} – Volume I – Ecopsicologia, Edição de Autor. ISBN: 978-989-9152-73-1. 2024

Para citar este artigo:

BATALHA, Sofia. O Contexto. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-57/seres-primevos/, número 58, 2025;

Nontokozo e Virah-Sawmy recordam como a própria psicoterapia — ou, melhor, alguns dos seus aspectos teóricos e práticos — está emaranhada com a supremacia branca, um paradigma que sustenta o Antropoceno. Neste contexto tratar a eco-ansiedade como um problema do indivíduo    da mesma forma como muitas questões de saúde mental, como a depressão e a dependência, são tratadas    é absurdo.

Sofia Batalha

Sofia Batalha

Eco-Mitologia e Ecopsicologia; Fundadora e Editora da Revista

Mamífera, autora, mulher-mãe, tecelã de perguntas e desmanteladora o capitalismo-global-colonial-tecnológico um dia de cada vez. Desajeitada poetiza de prosas, sem conhecimentos gramaticais.

Peregrina pelas paisagens interiores e exteriores, recordando práticas antigas terrestres, em presença radical, escuta activa, ecopsicologia, arte, êxtase, e escrita.

Certificada em Ecopsicologia e Mitologia Aplicada pela Pacifica University, nos EUA. Saber mais sobre mim aqui.

*Homenagear hystera. Recordar a capacidade de resposta. (des)aprender em conjunto.

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Autora de 11 livros & 2 (Des)Formações
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🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade. Ver próximos eventos aqui.