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“Não é a resposta que ilumina, mas a questão.”
Eugene Ionesco
Há dias perguntei a um homem: “O que é a casa para o masculino, no teu ponto de vista?” Respondeu-me que a casa era o seu Castelo. O lugar para onde voltava, depunha as armas e se permitia descansar. Um lugar seguro, onde cuidava da estrutura, as paredes, as janelas, a eletricidade e as canalizações. Que resposta profundamente arquetípica!
O castelo de um rei pode e deve estar representado numa casa, mas sobretudo é um lugar. Um lugar de segurança e beleza, um descanso para as armas e armaduras, com estruturas fortes que vão necessitando de atenção, de tempos a tempos. Um lugar interno, onde a alma habite e o guerreiro arquetípico se possa nutrir. Um lugar tantas vezes esquecido e apagado pelas batalhas travadas, pelo atropelamento de tarefas e objetivos que podem ter-se tornado estéreis e esgotantes. Que metáfora mais próxima dessa imagem que não o Rei Pescador e o seu Castelo do Graal?
A lenda do Rei Pescador é, para Robert A. Jonhson, psicólogo junguiano, a própria busca do Self, e um dos temas míticos do masculino arquetípico. Ela fala-nos de um Rei – último guardião do Graal – que foi ferido e que, apesar de não morrer do ferimento, tem a vida limitada e repleta de dor e sofrimento. Como em todas as estórias arquetípicas, existem várias versões para esta ferida. A mais comum é o ferimento numa virilha, impedindo-o de andar e tornando-o estéril. Outra versão conta-nos que ele se queimou ao pegar num pedaço de salmão assado que estava muito quente. Por instinto levou os dedos à boca sentindo o sabor do salmão, algo que nunca mais se esqueceu. A simbologia do salmão está ligada a vários mitos celtas, como sendo o provedor da sabedoria. Neste caso, o Rei Pescador prova o seu sabor sem que possa jamais servir-se dele.
Quem de nós não traz um Rei Pescador ferido, num castelo extraordinário, repleto de cavaleiros e damas resplandecentes, guardando tesouros a que nunca tem acesso?
A ferida da separação chega-nos da “realidade”, das circunstâncias da vida e afasta-nos vezes e vezes sem conta da essência, do sonho, da capacidade de nos maravilharmos com o que nos surge no caminho. E, no entanto, esta é uma etapa fundamental para o processo de individuação. Joseph Campbel fala-nos das três etapas do monomito: iniciação – separação – retorno. Ainda que a iniciação nos traga a força para o caminho, o enamoramento, o fogo, necessitamos separar para conhecer. Sair do útero e entrar na dualidade para retornar em consciência.
Talvez a iniciação – o chamado à aventura – seja esse lugar onde se prova o sabor do salmão, ao qual a ferida nos impede de aceder, mas que fica para sempre na memória. Esse algo maior que nós, tão acessível nas fases primárias da vida – quando sentimos que temos a força para mudar o mundo. Porém, aqui, a consciência é somente fogo e potencial e facilmente se perde no mundo, abandonando a memória do inefável nos baús mais recônditos da memória, não somente porque a vida se impõe, mas porque recordar o fogo abre a ferida de formas insuspeitas.
Entramos na fase de separação e vamos possuindo bens e sucessos, querendo mais, rodeando-nos de luxos que nunca nos trazem o “sabor fresco do salmão”. Interessante o facto de o sofrimento do Rei somente aliviar quando ele está a pescar. Uma tarefa de profunda presença, simplicidade, que acontece na natureza. O contacto com as águas profundas do inconsciente, a Mãe Terra com o seu feminino ancestral e a presença no aqui e no agora. Também aqui se encontram as pistas perfeitas para “aliviar as feridas”.
Contra todas as expetativas, a ferida do Rei Pescador somente pode ser curada pela chegada de um inocente, Parsifal, e pela mais simples das questões: A quem serve o Graal?
O jovem cavaleiro – ainda que saiba qual é – não formula a pergunta na primeira vez que visita o castelo. Não tem consciência, nem maturidade suficiente, para entender que a pergunta contém o que é necessário para sanar a ferida. Como o Rei Pescador, necessita de muitos anos e muita caminhada no seio da separação arquetípica, na qual se envolve em tarefas, batalhas e circunstâncias. E, como a memória do sabor do salmão, guarda consigo a amargura de ter tocado o Castelo do Graal sem ter curado o Rei. Apenas muitos anos mais tarde consegue regressar para formular a pergunta. O Rei Pescador levanta-se, plenamente sanado e o seu Reino regressa à vida.
Todos possuímos um Rei Pescador e um Parsifal internos. Um Rei com uma ferida primordial de separação, buscando a perfeição numa carreira, numa relação, numa vida de luxo, e sentindo que nunca chega, pois somos nós que não nos chegamos. E um Parsifal que, perdendo a ingenuidade, caminha pela vida e pela experiência ganhando consciência de si. O cavaleiro que necessita retornar à inocência para formular a questão. Pois ao encontrar a pergunta certa, já não necessitamos da resposta.
A quem serve o Graal?
Na mais simples das perguntas, encontramos o Retorno. A quem servem as nossas conquistas, conhecimentos e talentos, senão à Vida? A quem servimos nós, senão ao centro, à essência, à Alma, esse grande contentor de sabedoria interna? A mesma fórmula é encontrada na Jornada do Herói, quando regressa a casa transformado. Pois a espada mágica, o elixir da vida, o tesouro, já não simbolizam a conquista e o sucesso, mas somente o Serviço. Nada é válido se não for partilhado com a comunidade. O herói é o contentor do Sacro-Ofício de serviço aos Outros.
É urgente curar a ferida do Rei Pescador. É urgente servir a vida e os seus ciclos. Ganhar consciência de quem somos e aceitar a sabedoria da simplicidade. Voltar a unir a espiritualidade às tarefas simples da vida. É urgente a rendição ao Mistério.
O Castelo do Graal é difícil ser visto, apesar de necessitarmos apenas de “caminhar pela estrada, virar à esquerda e cruzar a ponte levadiça”. Mas ele está mesmo ali, dentro de cada um, visível aos olhos da inocência, da humildade e de um coração puro. À espera da mais simples das perguntas.