Numa cultura onde a falácia obsessiva é o crescimento ilimitado, cabe lembrar o simbolismo do Solstício de Verão para os nossos antepassados.

Há um ciclo na Terra, do qual somos parte inexorável, que nos fala de:

Decair, morrer, decompor, fermentar, compostar, aguardar, germinar, brotar, vicejar, florescer, frutificar, amadurecer, decair.

Se metade do ano a jornada é da ascensão: da semente ao fruto há um crescimento vertical, fruto do encontro da Terra, Sol, Água que despertam na semente o seu potencial de Vida. Na outra metade do ano a jornada é a descida mítica, do fruto até ser colhido ou cair no chão. O fruto é o fim da jornada de crescimento, e tem como destino amadurecer. Que já não é crescer para fora, mas sim apurar-se em si mesmo e no seu potencial nutridor.

O fruto não se come a si mesmo, mas dá-se não só aos seres que o comem, mas ao próprio chão onde os seus restos irão perecer e compostar formando nova camada de fértil chão e nesta nudez final revele então a semente, que é o promissor início da jornada de nova fecundidade, garantindo assim a continuidade da Vida.

Viemos aqui para, tal como o fruto, nos doarmos. Sermos nutrição durante a vida, sermos chão da Vida fértil que há-de vir na morte. Se apenas nos concentramos em crescer, que é uma jornada muito necessária mas cíclica e não permanente, teremos duas consequências inevitáveis: de um lado o desgaste, porque crescer só pode significar criar raízes e que ultrapassa o próprio chão que dá sustentação não terá mais por onde ir, por muito que corra e continue a expandir. Por outro lado, uma infantilização, que nos faz querer e laborar por algo e assim que lá chegamos, partir logo para o próximo objectivo sem integrar a jornada. Assim consumimos a vida e nos consumimos sem viver.

O Solstício de Verão é o auge solar do ano. O que quer isto dizer: que o Sol menino nascido no Solstício de Inverno do ventre da noite cósmica tal como as sementes de dentro do chão da Terra, chegou à sua meia idade. O ponto de maior fulgor e brilho assinala agora o início da descida, o Sol decai e alongam-se as noites, tal como os frutos decaem para a colheita ou para o chão, naturalmente. Sem queda não há nutrição nem sementeira. Atenta nisto, aprende a cair para poder nutrir, renovar-te e novamente germinar.

Este é momento de pousio: nas tradições camponesas, vai-se parando nos dias mais quentes. No meio da Vida, paramos para reflectir sobra a jornada até aqui, libertar os objectivos cumpridos e discernir o estado da ponte entre o mais externo de nós (Verão) e o mais interno (Inverno). Começa o Sol a descer e a alma a convidar ao mergulho na profundidade da noite e de si mesma. É tempo de agradecer e celebrar, mas sobretudo de colher e saber não somente devorar mas sobretudoClipartilhar e preservar os frutos do trabalho árduo para que nos nutram a nós e nossas relações pelo tempo da estação fria que se antevê. Sem conservação, toda a sementeira é vã. É tempo de libertar os objectivos cumpridos, saboreá-los, preservar as aprendizagens, perdas e bençãos e aprender a sonhar outra vez, devagarinho, com atenção ao sussurro do Espírito da Vida que nos sonha.

O fruto não vem sozinho nem para si mesmo, nós também não. Cada sonho tem que servir o bem de todos e de cada um ou não serve bem nenhum. Se é desafio? Claro. Mas de que outra forma poderíamos desenvolver alinhamento?

Há que aprender a enraizar, sem rigidez mas com entrega ao chão e saber que raíz tanto sustenta o chão como o chão sustenta a raíz. Tudo é interação recíproca, dinâmica e consciente.

Há que aprender a sustentar cada estágio do ciclo da vida, cada fase das idades do tempo, seja luz ou escuridão, frio ou calor. Isso é amadurecer: não estar sempre na adição do doce, mas saber que tudo traz nutrição, sobretudo a diversidade. Que a nossa capacidade regenerativa e apreciativa nos possa acompanhar nesta salto do fogo

Porque sim, querendo ou não saltamos a fogueira do Solstício:

Se do Solstício de Inverno até agora o movimento do Sol foi de expansão, calor e esplendor, agora no Solstício de Verão atravessamos o fogo para saber como preservar o fogo do lar nas noites mais frias que virão. O fogo da casa, que nos protege e ampara, lembrando que sem braseiro aceso havia quem morresse de frio durante a noite. O fogo que cozinha o caldo que nos nutre. O fogo que nos ilumina mas que também precisamos de saber apagar para mergulhar no repouso regenerador. O fogo do coração, que é o carinho dado e recebido, o foco com que nos dedicamos à acção e o Amor que é o maior voto de presença para com tudo e todos.

Sim, a chama externa perece, mas a chama da Alma faz o seu chamado e convida a deixar cair em consciência e saber preservar o sagrado que arde em verdade e que, podendo queimar, nos desperta para o caminho real a fazer e a parte que temos nele.

É pois tempo, de amadurecer.

Amadurecer é ver na noite o seu valor inteiro germinativo, nada há de mais fértil do que a Terra Negra. 

É ter a humildade de olhar a noite infinita e abraçar essa escuridão cósmica que é Mãe de todas as estrelas, planetas, soís e luas.

No momento actual, amadurecer é quebrar o mito da luz, da iluminação, da transcendência e poder aceder a espaços reais de complementaridade sem a qual a Vida não pode existir.

A Luz não pode servir a nossa compulsividade espiritual do mito da felicidade eterna, nem da libertação. Estamos em relação e não podemos mais fugir nem desresponsabilizar-nos pela semente e fruto que somos.

À luz do fogo do Solstício acontece o ritual da verdade total: assumir, pedir perdão sem expectativas de o receber, por nós e pelos nossos ancestrais. É tocar nas feridas da Alma do Mundo e da Terra, que choram e pedem colo de cuidadores atentos, presentes, sinceros e não dos filósofos da ausência que a espiritualidade tantas vezes nos incita a ser.

Estar presente é ter mãos na massa da vida e da alma e ser amassado também.

É não querer transcender, mas antes saber e curar, sem fórmula fixa, porque a vida está sempre em evolução e nunca se repete.

É olhar os pensamentos da cultura e colocá-los ante da chama da consciência, e com toda a compaixão que possamos imaginar, beijar um a um enquanto os deixamos morrer e parte de nós com eles, na chama necessária da transformação.

É cobrir o rosto de cinza e cheirar o pó, sabendo que um dia seremos este chão que pisamos e sobre ele caminharão os nossos ancestrais e que talvez não haja maior honra do que ser pó que viaja entre o chão fértil, a semente, o passo do peregrino e as estrelas. Que este pó sem identidade, mas com toda a consciência está tecendo agora mesmo em nós o destino que nos tornaremos.

A nossa potência será sabedoria e riso, como os dos anciães sem dentes e de ossos retorcidos que riem como crianças e falam como sábios. Que os saibamos convidar a entrar na nossas vidas, casas, mesas, corações. 

Porque somos os descendentes de ontem e os ancestrais de amanhã e já chega de isolar a decadência da nossa experiência.

O Verão convida a perceber o que veremos, aceitando que a visão é sempre parte cegueira, parte certeira.

Carl Jung dizia que há que praticar a morte em vida para podermos saber viver.

Assim seja o Solstício, que não é um dia, mas uma jornada de quarenta dias até ao abraço da próxima celebração da roda do ano. Que do fogo do carinho se faça caminho.

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