6 MIN DE LEITURA

Adoro casas velhas, melhor, casas antigas com história, porque velhos são os trapos e uma casa não é um trapo, embora possa ter muitos trapos quando os juntamos e criamos uma família. Quando era miúda, a minha prima, levava-me a mim e ao meu irmão a passar ferias na Nazaré. E eu ficava todos os dias horas a olhar para uma casa que adormecia sobre a visão daquele mar sem fim. Quem conhece a Nazaré de certo sabe que casa estou a falar, depois da Bola Nivea e junto ao Hotel Cubata, repousa sobre os seus alicerces uma casa há muito fechada, a sua porta principal é na esquina de uma espécie de torre. E ficava naquele namoro platónico com aquela casa, sem entender o porquê de estar e continua a estar fechada. Não sei há quantos anos está fechada, sei que sempre a conheci assim, e já lá vão 20 anos desde que ela começou a preencher o meu imaginário. Imaginava a vida, imaginava os interiores de tectos altos com o mar emoldurado nas janelas, imagina como seriam os móveis, o chão, um exercício de imaginação diário que me conectava ao espírito do local.

“Muitas vezes os meus olhos enchem-se de lágrimas… a casa chora e eu choro com ela.” 

Começou a aparecer movimentos de fotógrafos de casas abandonadas, vazias, vandalizadas, destruídas, casas intactas que os donos foram ali e já vinham, num instante. Mas esse instante virou eternidade. O blog abandonados.pt faz um belíssimo trabalho porque investiga o que partilha, e temos a sorte de saber mais ou menos, ao de leve a história e o motivo do abandono. Muitas vezes, André Ramalho, acaba a história a dizer que a casa está abandonada porque os herdeiros rumaram a cidades grandes, ao estrangeiro. Há também o infeliz caso das casas em que os herdeiros não se entendem, e ficam ali a espera de alguma coisa. Enquanto se espera, e elas esperam, ficam fechadas, com uma vida suspensa. Ficam devolutas, até que o tempo não perdoa e passam a abandonadas. E nos seus interiores há fotografias, há documentos, recordações, pedaços de história comum e individual. E entre a imaginação de uma vivência e uma dor de uma casa… fico. Muitas vezes os meus olhos enchem-se de lágrimas… a casa chora e eu choro com ela. 

Por fim há as incontornáveis casas “assombradas”. Em todas as cidades, vilas e aldeias há uma casa assombrada, faz parte da nossa tradição. As casas ditas assombradas são todo um outro tema. Por vezes há portais nessas casas, outras a história da qual foi pano de fundo é tão macabra e triste que a casa fecha-se ao mundo e cria assombrações. Ficará, talvez, para outro artigo. 

“Há um valioso património, e este património não é o material, mas o energético que é renegado, rejeitado, repudiado e desonrado..” 

Naquilo que estudei de Feng Shui, falamos de casas abandonadas quando elas fazem parte da nossa vista. Traduzindo-se assim na categoria de SHA, são focos de energia estagnada, morta. Falamos enquanto habitantes de casas herdadas, dos seus desafios diários, a repetições de padrões e dogmas. O poder transformativo de uma casa herdada. Porém não se fala de herdeiros que por algum motivo deixam cair a história. As casas herdadas são as que geralmente ficam ao abandono, pois as que não tem herdeiros ficam para o Estado. Umas são casas de família, outras de férias, nunca sendo totalmente habitadas, outras ainda para alugar a terceiros. Em Portugal, estima-se que existem cerca de 700.000 casas devolutas. Nos grandes centros urbanos, Lisboa, Porto, Coimbra, etc, a preocupação vira-se para uma questão de rentabilização. Muitos são prédios que, com o congelamento das rendas e o aumento constante do custo de vida, os senhorios deixaram de ter capital para obras. Resultado são inúmeros prédios devolutos. Politiquices à parte, paira sobre esta situação a pena de serem reclamados para o Estado depois de pesados impostos sobre o imóvel.

“É a incomodativa consciência de tudo, que tudo está ligado, e que nós estamos ligados a tudo.” 

Posso categorizar estas casas em casas de família (que incluem as casas de habitação e de segunda habitação) e as casas para rentabilização onde estão todas as casas, prédios e afins para alugar a terceiros a fim de terem uma renda das mesmas. São as casas de família que mais me chamam. Quando um ou mais herdeiros deixa ao abandono a casa de família, está a deixar ao abandono as suas raízes, a sua história. Deixam cair o que os construiu nos primeiros anos de vida. Outras vezes nunca se conheceu a casa, porque a vida assim o ditou, então há uma ligação que parece não existir. Mas há sempre. Há um valioso património, e este património não é o material, mas o energético que é renegado, rejeitado, repudiado e desonrado. Sim, porque há uma desonra em deixar cair uma casa, não assumir a herança. E esta desonra também não é aquela dos filmes, esta desonra quase não se nota, é subtil, não palpável. Não se esconde a cara na rua por isso, não se fica rosado ou desconfortável. Mas em  há algo que vira e mexe e não se sabe o que se tem. Há uma moinha lá no fundo de quem não sabe o que é mas sabe que é alguma coisa. Há momentos que se sente mais e outros que se sente menos. É uma desonra subtil com as nossas raízes. 

“Na volta ainda se compreende mais sobre cada um, na volta ainda se percebe o porque de um vazio que insiste e perdura. ” 

Como referi, Feng Shui põe as casas abandonadas como energia morta, estagnada logo prejudicial. Então quando se é herdeiro de uma casa de família abandonada, quando se abandona (intencionalmente ou não), individualmente ou em conjunto, está a anexar-se essa energia às raízes. É como uma raiz podre que está ali, que vai minando devagarinho. O facto de a abandonar fisicamente não quer dizer que energeticamente não se esteja ligado a ela, que os filhos não estejam ligados a elas. E às mulheres, que tem uma linhagem muito marcada, pois o óvulo que irá dar origem à neta (ou ao neto) já existia na barriga da avó quando estava grávida da mãe. Então há um abandono de um conhecimento ancestral sobre nós e as nossas origens. Há uma frase de um índio brasileiro, que diz qualquer coisa como: nós sabemos quem somos, de onde vimos, e os brancos do Brasil não sabem. E esse facto faz de nós mais fortes, mais inteiros. Este índio fala de um pertencer ainda mais profundo, em camadas muito mais profundas, porém fala do saber de onde se vem, e as nossas camadas, pelo menos as primeiras, muitas vezes a matrialização é nas casas dos nossos antepassados. Muitas famílias emigram, e deixaram Portugal de vez, não voltaram mais. Mas as suas raízes continuam aqui, a casa onde deram os primeiros passos continua lá à espera, essa casa vai influenciar os filhos de quem partiu também. É a incomodativa consciência do todo, que tudo está ligado, e que nós estamos ligados a tudo. 

A solução não é toda a gente ir em rancho viver para as casas que herdou que por algum motivo estão ao abandono. Não, a solução passa em revisitar (ou visitar pela a primeira vez) os locais, honrar a memória dos antepassados, agradecer o percurso feito e libertar a casa. Na volta ainda se compreende mais sobre cada um, na volta ainda se percebe o porque de um vazio que insiste e perdura. Sabe-se lá o que pode acontecer quando se honra o passado, quando o curamos e libertamos. Quando se tirar do chão daquela casa atrás do sol posto a fotografia da avó, que por sinal era grande padeira, e se compreende o porque do pão ser sagrado, e quantidade parva de utensílios que se tem para fazer pão e tudo o que tenha haver com pão. E que na verdade só se queria uma mesa de mármore e um forno a lenha. Libertar a memória da casa, limpar a casa, vender o que pode ser vendido ou doar mesmo. Já que está tudo ao abandono porque não doar a quem precisa. Não deixar a apodrecer, não deixar a memória de os antepassados apodrecer. E claro, há todos as outras situações, quando os irmãos não se entendem, quando todos querem, e ninguém tem, ou quando há um irmão ressabiado que amua só por que sim, pelo menos assim se julga. Tentar enterrar o machado é uma boa opção, compreender os motivos de todos e saber que uma casa herdada por várias pessoas é uma casa que requer compreensão e, mais importante, cooperação, porque na verdade todos partilharam o mesmo útero, a mesma casa mãe. Porque não honrar isso? Em relação a estas situações de brigas e afins, lembram-se que há sempre um lugar de amor que se pode falar, se se quer realmente resolver a situação, pode-se lembrar que nada existe fora de nós que não exista em nós primeiro. Ah! a responsabilidade de criar a própria realidade. 

Há tantos cenários possíveis para que uma casa seja deixada ao abandono que o mais importante é compreender que enquanto ela estiver a cair aos bocados, com a história da família, com tudo o que isso engloba, quem descende dessa casa está incompleto, com uma parte de si em ruínas. O resgate das origens é um acto de coragem e liberdade.